Pressler morreu em Bruxelas, depois de
disparar um tiro na cabeça. A poesia que nos outorgou testemunha um
desassossego interior que oscila entre uma busca desesperada da beleza/amor e a renúncia a uma realidade sufocante e claustrofóbica, que era a do país
da ditadura e de todas as limitações à liberdade individual. Mais do que o
surrealismo, parece ser o simbolismo a sua principal fonte. Ao lermos estes
poemas vislumbramos ecos de um interesse pelo obscurantismo esotérico, pelos
princípios cabalísticos, pelos rituais egípcios da morte, com reflexos imagéticos
de uma cosmogonia singular: «do mesmo Ventre o rosto azul e as mãos / o corpo
alado o estranho pensamento / e o Bruxo
que dá corpo em suas mãos / à Figa que equilibra o firmamento» (p. 14).
Os poemas de “Filipa” são, desde a inicial
(iniciática?) carta a Almada Negreiros, um escape ao realismo, uma porta de
entrada para um universo íntimo onde a realidade quotidiana raramente chega, e,
quando chega, vem já de tal modo deformada que quase nem damos por ela. Há por
isso uma elevada acentuação emocional em alguns poemas, belos na forma e no
ritmo, muitas vezes comoventes até pela simplicidade que alcançam: «Obrigado
meu deus / por mais esta manhã / disposta puramente / no regaço da terra
adormecida // por mais esta manhã / te prometo, meu deus // quando eu morrer
irei falar de ti / ao mar / ao sol / às flores / a meus irmãos» (p. 18).
A natureza é um dos elementos convocados para configurar um belo hermético e inacessível, a não ser talvez pela
fusão que com ela a morte proporciona. Tema central nesta poesia, a morte
aparece como necessária ao amor, à paz. “Oferta”, extraordinário poema, di-lo
em letras garrafais: «O AMOR, A PAZ, SÓ SÃO POSSÍVEIS NELA.» (p. 20) O pendor
escatológico que percorre toda a obra, com referências recorrentes ao cuspo, ao
escarro, e à merda enquanto “Autógrafo” da existência (ver poema da página 64),
não pode ser dissociado desta complexa conexão estabelecida entre o absurdo da
morte e a possibilidade do amor: «um escarro de outro azul
aconteceu / ao canto de uma boca colossal // o tempo fez do escarro que nasceu / o corpo deste
absurdo universal // e quando a vida
bela despontava / liberta já
da trampa que a gerou / tornou-se humana // — náusea / angústia / raiva —
/ porque o Homem fez deus — e se matou» (p. 22).
Alguns poemas de “Filipa” são sínteses modelares dos mistérios da vida, equilibrando a complexidade
filosófica em que mergulham com uma agradável fluência rítmica e prosódica. Outros
parecem fragmentos, estilhaços de uma experiência íntima pautada pela fúria e
pela raiva com que pode alguém esmagar o desespero antes de por ele ser
esmagado. Belíssima edição da "neófita" Barco Bêbado, de que se fizeram apenas
300 exemplares. Deixo para exemplo um dos meus poemas preferidos do livro:
quero ser Eu e quero ser
Loucura e quero ser
Razão, sem distinguir e quero nu meu corpo
e nu vestir eu quero a nua
veste da ventura
e quero nua e triste a
sepultura e quero nela
entrar e, já, sair e quero ser sem Ser ao decidir
se quero ser chão ou ser
altura
e quero que mil olhos venham
ver-me e que mil mãos
anseiem por sentir-me e que
mil bocas sofram por
sorver-me e quero que mil
homens queiram ter-me
e em mil corpos de virgens
quero vir-me
para ver se consigo compreender-me
1 comentário:
Tenho este. Gostei tanto.
Enviar um comentário