domingo, 28 de junho de 2020

TIPO OS PALHAÇOS


Pensemos num livro com o preço final de 20€, imaginemos que o valor da venda de um exemplar seria equitativamente distribuído por quem nele trabalhou até chegar ao consumidor final. Autor, editor, designer, gráfico, distribuidor e livreiro arrecadariam 3,33€ cada. Para que pudessem amealhar um mínimo de sobrevivência, por exemplo 10000€ anuais, teriam de vender aproximadamente 3000 livros. É óbvio que nada disto é assim tão simples, pois há empresas no universo livreiro que conseguem ser praticamente tudo ao mesmo tempo. E um editor não publica um único livro por ano, pelo que as livrarias têm uma oferta diversa de, vá lá, 10000 títulos de 5000 autores, de 250 editores, impressos em 125 gráficas, que chegam a 50 livrarias através de 25 distribuidores. Não estou a pensar nas vendas online. Seja como for, nada disto é tão simples também porque são raros os livros que vendem 3000 exemplares num ano, e mais raros os 3000 leitores que os compram. E mesmo que vendam 1000 ou 500 ou 50, o dinheiro perde-se pelo caminho. A partir do momento em que sai da carteira do comprador é raríssimo aquele que chega ao autor. Daqui se explica que escassos sejam os autores que não são outra coisa qualquer, uma coisa que garanta a sobrevivência. Alguns são mesmo editores, outros são designers, há deles a trabalhar em gráficas e em distribuidoras ou livrarias. O tempo que lhes sobra para serem autores é curto, pois têm muitos afazeres. Depois há que arranjar tempo e disponibilidade para promover a obra, indo a festivais e encontros, escrevendo para jornais ou revistas, participando em mesas quadradas nas escolas, nas bibliotecas. Tudo isto é muito dispendioso, mas o pior é quando pedem ao autor que se descreva em 6 linhas. Fale-me de si na terceira pessoa, resuma o seu percurso, diga-nos o que tem feito para que possamos justificar o convite que lhe fizemos. Acrescem os impostos, as ofertas. Há aquele conto de um escritor húngaro sobre certo autor que comprava os seus próprios livros para poder oferecê-los a quem mostrava interesse na sua obra mas não tinha tempo para ir a uma livraria adquirir o livro que tanto interesse lhe provocara. E o autor lá oferece o livro na presunção de que será lido. Geralmente não é, fica esquecido entre outros livros como é costume o autor ficar esquecido entre outros autores. Tudo isto é assaz, deveras, muitíssimo fastidioso e até frustrante, mas as coisas vão-se fazendo. Ninguém sabe muito bem porquê, com que propósito ou intenções, certo é que as coisas aparecem feitas. Será só uma maneira de enganar o tempo? Vaidade? Carolice? Necessidade de afirmação? Devia ser trabalho, mas o trabalho é pago. Quando não é pago, fala-se de escravatura e de exploração. Talvez o autor seja um escravo voluntário, um explorado alegre. Tipo os palhaços.

4 comentários:

Daniel Ferreira disse...

Percebo a tua indignação e sarcasmo, perfeitamente, mas a resposta, se bem percebi, creio que está, de raspão, num dos posts anteriores.

Na publicação como na auto-publicação, também, a questão da sobrevivência, por muito paradoxal que pareça, está uns degraus acima da importância do dinheiro. És disso prova, como os muitos que cabem no saco do que escreves e isso, a meu ver, só demonstra que a questão do dinheiro está num plano, capitalista e exigido, e a daquilo que nos move, no prazer de fazer aquilo de que gostamos.

Viver daquilo que nos faz pagar as contas permite-nos o gosto e isso só evidencia que o estilo de vida que vamos levando está errado, não por conseguirmos ou não viver do que nos dá prazer, pecado capital a cheirar a mofo, mas por vivermos numa bolha, onde tomamos como essencial o que é dispensável, e amaciamos o cabedal com gestos que deveriam ser outros para fazer da sobrevivência assentar num outro estilo de vida.

Vejo isso, sem generalizar, em muito artista que quer ser um bom vivant mas é incapaz de por a mão na terra. Ou então: que fode o cabedal com o que não deve e não procura ser um rural instruído, por exemplo, e puxando a brasa à minha sardinha.

Basta perceber e questionar sob a óptica do ambientalismo, assim quero crer, e quase toda e qualquer reinvidicação por mais dinheiro e necessidade dele, cai em saco roto.

A malta anda a viver acima das suas necessidades, não consegue perceber isso, e só por isso cai em desgraça. Mata a fome e consome, consome. Sair desta trama e criar redes de auto-suficiência, nisso ninguém pensa.

E para que conste, não digo tudo isto com o gosto de quem quer corroer. Apenas acho que a máquina capitalista está já tão avançada e bem oleada, que ver com distanciamento, nomeadamente de gestos, parece quase impossível e pior, alucinado. Mas como diria o outro, a despropósito e servindo apenas de analogia, lá por sermos paranóicos isso não quer dizer que não andem atrás de nós.

Ou seja: apesar de tudo, o pessoal mexe-se para o que o move, apesar das dificuldades muitas das vezes artificiais e ilusórias, há coisas mais importantes que o dinheiro. Quando ele não falta, pois claro!

sonia disse...

Escritor tem que nascer com o loló virado pra lua... rsrsrs

sonia disse...

Um mestre pediu a vários discípulos cegos para explicarem o que é um elefante: o que tocou no rabo disse que era uma corda, o que tocou no dorso disse que era uma parede de concreto, o que tocou na orelha disse que era uma folha enorme, o que tocou na tromba disse que era uma mangueira.
Todos descreveram o elefante a seu modo e ninguém conseguiu definir o que é um elefante.

R. disse...

Palhaços tristes. :)