segunda-feira, 10 de agosto de 2020

«Communication to the portuguese writers association»

 


   Se deixarmos de lado por um momento a altiva e solitária meditação no momento do puxão angolano, é este o texto mais significativo de Cesariny no quadro da revolução. Proposta de intervenção — reformar a linguagem literária dos escritores portugueses e estancar o processo em que a língua literária vinha a evoluir desde o século XVI —, o texto é em simultâneo uma retrospecção avaliativa. O que o autor põe em causa é o processo do Renascimento e tudo o que se lhe associa — latinização forçada da língua, surgimento duma norma culta nos domínios da fonética, da morfologia e da sintaxe, fixação e codificação duma gramática oficial e consequente repressão duma estirpe oral e popular que vinha do medievo e das origens moçárabes da língua, representante da sua evolução mais espontânea e criativa. Denuncia-se o papel que o escritor teve no processo de asfixiação — aceitar essa norma, ajudando assim a marginalizar e a sufocar as fontes vivas da língua popular — e aponta-se o único momento em que o escritor pôs em causa essa colagem, o vintismo e a sua ruptura revolucionária com o antigo regime, logo deixada para trás com os bons modos da burguesia urbana e rural, nada interessada em ouvir palavras grossas e vernáculas nas suas recepções. Essa mesma elite preferiu falar francês nos seus salões, como hoje inglês, a usar a velha e «imprópria» palavra das classes baixas e sem instrução. Neste processo o poema de Camões teve um lugar crucial, pois foi por ele que passou o processo de latinização da língua e foi nele que se codificou um ensino forçado e normativo da gramática, que actuou ao longo dos séculos da sua formação e estabilização como instrumento de tortura — a divisão sintáctica de orações na frase — e de regularização. Demais foi ele que mais apto se mostrou a preencher as exigências míticas e propagandísticas do imaginário do Estado moderno, nascido no crisol do Renascimento, e do pequeno imperialismo periférico português que com ele se desenvolveu.
   É neste quadro que se entende a proposta de trabalho de Cesariny — fazer «uma profunda reforma da linguagem literária dos escritores portugueses». A queda dos fascismo equivaleu para ele à queda do antigo regime. Estava-se diante duma ruptura que podia fazer abalar o edifício social que vinha a ser construído desde o Renascimento e da formação do Estado-nação. No desabar do salazarismo, creu que era possível olhar para as classes baixas doutra forma, valorizando-as, e pondo o escritor a aprender com elas. As classes baixas não deviam ser normalizadas segundo o padrão da cultura oficial — acesso à escola e à universidade, acesso ao trabalho e ao mercado; essas classes deviam ser vistas como um reservatório de valores vivos e pessoais, muito mais soltos e criativos que os da cultura dominante. Era necessário garantir-lhes a possibilidade de preservar e desenvolver as suas formas culturais próprias, cabendo ao escritor assinalar a sua vivacidade e tomar aí lugar. A linguagem erudita, ensinada pelos mestres-escola na linha e no modelo dos antigos mestres de retórica, seria assim deixada de lado, a favor do tagarelar vernáculo, ordinário e popular, que fora o dos cancioneiros trovadorescos medievais e ainda o do teatro vicentino. Depois de constatar a «insipidez e moralidade fonética, morfológica e sintáctica» em que o escritor português se enforcava, o autor propõe a única revolução ao alcance de qualquer escritor — a revolução da fala, o corte com a língua literária tal como ela se sistematizava e desenvolvia desde a adaptação dos modelos italianos e estrangeirados no século de Sá de Miranda, António Ferreira e Camões. Finalizava considerando medidas a pôr de imediato em prática para libertar a língua dos espartilhos em que a asfixiavam desde a Renascença: denúncia dos acordos ortográficos e da norma gramatical; liberdade de escrita em desacordo com estas normas; recolha e valorização do linguajar urbano e rural então vivo; criação nas universidade duma cadeira de «revolução de língua portuguesa»; ensino escolar da língua às crianças segundo códigos flutuantes e variáveis, nunca fixos e normativos. No contexto da queda do Estado Novo e das possibildiades que se abriram estas propostas representam um momento de transcendente importância — o único em que a revolução quis ganhar voz própria, não a da propaganda, a dos chavões e a das palavras de ordem repetidas e marteladas, linguagens da dominação que servem o esquecimento, mas a da phala viva, que era a linguagem do desejo, a linguagem sem censura, a linguagem da rua, a linguagem do Homem Mãe ou da Mãe fálica.

António Cândido Franco, in O Triângulo Mágico. Uma biografia de Mário Cesariny., Quetzal Editores, Junho de 2019, pp. 252-254.

1 comentário:

GF disse...

Boa noite,

Onde é que se pode encontrar a tal comunicação, por favor?

É público que Cesariny conhecia e respeitava as explorações de Moisés Espírito Santo nas origens fonéticas de muitas das expressões populares e toponímicas portuguesas. Localiza-as no norte da Fenícia, no longínquo ugarítico, língua cananita, falada na cidade Ugarit, cujas ruínas foram descobertas apenas em 1929 (na semana passada, portanto). Isto, que é posto em evidência no livro "Fontes Remotas da Cultura Portuguesa", ter-lhe-á mesmo valido o completo descrédito por parte de alguns respeitáveis linguistas académicos.

Hoje (ou em 2019, que é a mesma coisa, dadas as ordens de grandeza de que falamos), tem graça, é proposta por Fernando Venâncio, no livro "Assim Nasceu uma Língua", a tese de que a origem do português é galega, remontando-a ao ano de 600, quase seiscentos anos antes do estabelecimento do reino. Não tão ousada como os XX a.C. de Moisés Espírito Santo, mas de qualquer forma uma hipótese interessante quando aberta a discussão.

Note-se neste poema que vem, se não mais cedo, na edição de 1980 de "Manual de Prestidigitação":


PINTAR O SETE

Voltar ao fim.
Pintar três vezes o sete:
ficar doido.


As averiguações de Moisés Espírito Santo parecem não ter sido publicadas antes desse ano, o que não significa que não fossem já conhecidas de Cesariny, pois não é certamente através de livros a melhor forma, a mais aberta, de conviver e discutir.
Aqui ficam cinco confrontos de fonia e significado que Espírito Santo estabelece entre expressões portuguesas e o ugarítico:

Português: Pintar o caneco - «fazer diabruras»
Ugarítico: pth knkt [pitag kanektu] - 'seduzir/abrir o encanto' (=fazer encantamentos).

Português: Pintar a manta - «o mesmo que pintar o caneco»
Ugarítico: pth mnt [pitag mante] - 'abrir o encanto, abrir a fórmula [encantatória]'.

Português: Pintar a macaca - «o mesmo que pintar a manta»
Ugarítico: pth mh hka [pitag maagaka] - 'seduzir o «jovem companheiro» (diabrete das feiticeiras)'.

Português: Pintar o sete - «o mesmo que pintar a macaca»
Ugarítico: pth st [pitag sète] - 'guerreiro mítico, colaborador de Anatu(st) e nome do diabo'.

Português: Pintar o caramujo - «o mesmo que pintar o sete»
Ugarítico: pth qra msh [pitag qramasu] - 'atrair o chamamento / invocação do mensageiro'.


Atendendo ao poema de forma isolada, a expressão "pintar o sete" apresentada assim parece ter pouca relação com o seu sentido ugarítico, mas o título do livro continua a ser "Manual de Prestidigitação", o qual - considere-se mais ou menos rebuscadas as afinidades fonéticas e semânticas colocadas por Espírito Santo nos outros três exemplos - sugere incontestavelmente "abrir o encanto", "abrir a fórmula do encanto", ou mesmo "diabrete das feiticeiras", "atrair o chamamento", "invocação do mensageiro".

Não consultei a primeira edição de "Manual de Prestidigitação", de 1956, mas sei que difere bastante da corrente - mesmo em extensão. Ignoro, portanto, se o poema consta do livro original, publicado quando Moisés Espírito Santo contaria pouco mais de vinte anos de idade. Em todo o caso, ainda é vivo, e seria interessante saber até que ponto as suas descobertas arqueológicas desempenharam um papel na última poesia de Cesariny e nos poemas acrescentados nas edições mais recentes.

Aberto a discussão! (se estas coisas interessam a alguém)

GF