terça-feira, 4 de agosto de 2020

DEVE SER ISSO

Deve ser isso, deve, prezam muito a liberdade, a de estar quieto, o mais quietinho possível, para não incomodar ninguém nem ser incomodado, e, em sendo atingido na sua quietude, pedir quietamente que quem incomoda deixe de inquietar. Deve ser isso a liberdade, assumir compromissos com a desoneração, acordos com a isenção, isto é, a liberdade de ficar à margem, ou seja, permanecer fiel ao sossego, enchendo a barriga enquanto ao lado alguém morre à fome, calcando o sofá a contar horas pelos dedos. A liberdade de, tal velho do Restelo, ficar a contar navios ou carneiros ou simplesmente convidar o amor para ir ver aviões levantarem voo, na esperança talvez de que tombem trazendo um pouco de emoção às nossas vidas, permanecendo no mesmo sítio de sempre, com a mesma quietude de sempre porque, como diz o povo e com razão, de hora em hora, Deus melhora. E um homem não é Deus, um homem tem mais o que fazer do que fazer, um homem tem de zelar pela sua liberdade de observar quem passa, espreitar as montras, ver as vistas. Pois, deve ser isso, prezar a liberdade desengajando, ou seja, desobrigando, isto é, desvinculando, todavia trespassando as mãos para os bolsos, contudo engolindo sapos, porém encolhendo os ombros, se bem que fazendo orelhas moucas de quem se achega com mocas e diz: eu sou mais livre do que tu. Ele há com cada um, olha agora este, lha agora oeste, a julgar que é mais livre de espirrar do que eu de me assoar, quando o que importa não é dizer ao gerente que o leite está azedo, mas pedir a conta e, se fizer favor, por obséquio, com número de contribuinte. Deve ser isso de prezar muito a liberdade, assim como assim é mas não é, foi mas não foi, está mas não está, é um vai-se indo enquanto a caravana passa ao ladrar dos cães, se bem que já não passe caravana alguma, agora é tudo cão de estufa em canil certificado, diria mesmo, agora é tudo espreitar de viés, olhar de soslaio, tratar os calos aos pés para que, não haja dúvida, Deus possa continuar a melhorar enquanto o homem ladra e grita ó mãe, pela mãe, homãe, sufocando, asfixiando, amortalhado numa quietude de ver andar, olá, tudo bem, como é que vai isso, vamos indo, ‘tá-se, até amanhã se Deus quiser. Deve ser isso, prezar a liberdade de Antero se sentar num banco de jardim para se despedir de quem preza a liberdade. Com dois tiros muito sossegadinhos. Que ele há com cada um, até para se matarem são preguiçosos. 

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