quarta-feira, 5 de agosto de 2020

INFERNO

 


Decorria o ano de 2001 quando a saudosa Íman Edições publicou “Inferno”. Autores: Maria Velho da Costa e António Cabrita. Em prefácio explicava-se que o texto resultara de uma «encomenda que ficou por cumprir: retratar numa trilogia cinematográfica, que se desdobraria em série televisiva, o estro, a aventura e o acinte de Camilo Castelo Branco». E que estro! E que aventura! Uma cronologia apensa aos três episódios dava conta, a quem desconhecesse, das linhas pelas quais a vida de Camilo foi sendo costurada: filho de pais incógnitos, ficou ao cuidado de uma tia depois de perder o pai com apenas 10 anos de idade. Aos 16 anos abrem-se-lhe as portas do amor e foi um ver se te avias de paixões assolapadas, raptos, fugas, perseguições, cenas de porrada, enamoramentos, prisões, processos, viuvezes, filhos perdidos, flirts, escândalos, polémicas, adultérios. Até um filho louco aparece pelo meio. Nos entretantos, uma vida literária impressionantemente prolixa. Tope-se: só entre 1862 e 1866, em 4 anos de vida, foram 33 títulos, dos quais 18 eram romances. Do argumento em causa, a certa altura do primeiro episódio:

 

ANA

Os livros têm sido a tua vida. Desfazeres-te…

CAMILO

A minha vida tem sido o negócio dos livros.

 

Ainda no primeiro episódio, uma cena na Cadeia da Relação, onde Camilo esteve preso com o famigerado Zé do Telhado:

 

Vindas do exterior ouvem-se duas vozes que entoam “Queres a Roda?”

 

CAMILO

Alívio. Estava crivado de dívidas. (Pausa) Está a ouvi-los?

ZÉ TO TELHADO

Os dois cegos? Costumam estar ali.

CAMILO

Ouve as moedas na lata?

ZÉ DO TELHADO

A esta distância?

CAMILO

Eu ouço-as, uma a uma. Sabe porquê?

ZÉ DO TELHADO

Não.

CAMILO

A canção é minha.

ZÉ DO TELHADO

O “Queres a Rosa?”

CAMILO

Cada moeda daquelas é-me tirada do bolso.

ZÉ DO TELHADO

Deixe lá os pobres dos cegos, o que não circula não rende.

CAMILO

É o único ponto que me consola… ainda que não seja de exclamação.

 

Camilo Castelo Branco suicidou-se num dia de 1890. Estava cego.

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