Num país com «mais de 40% dos doentes à espera de cirurgias fora do prazo aceitável» (notícia de hoje), onde o fascismo, e o racismo, o machismo e a homofobia a ele associados, dão diariamente sinais de medrança, num país com a «quarta maior contracção económica da União Europeia» (notícia de há dois dias), com processos de insolvência a crescerem de dia para dia... o grande tema e a grande preocupação do momento é a realização da Festa do Avante. Fomos sempre um povo sábio e perspicaz na escolha de prioridades. Entre argumentos capciosos e outros bem-intencionados (o inferno está cheio deles), passando por muita desinformação e preconceitos a rodos, há de tudo um pouco. Portugal está dividido em torno de uma “festa”. É curioso de se ver.
A realização da Festa do Avante começou a ser assunto ainda no período do Estado de Emergência. Houve muito português que adorou a experiência de não poder sair de casa sem ter uma força de segurança à porta, o travo a ditadura e o gozo do pequeno poder excitam o tiranete que há em nós. O recrudescimento da “bufaria” foi o sinal mais explícito do amor que temos à pátria em geral e à saúde pública em particular. Vai ficar tudo bem, dizia-se, como se estivesse tudo mal. Não estava nem está, porque nunca está tudo mal onde há pelo menos uma coisa que está bem: a mesquinhice nunca deixou de estar bem. É importante que se diga isto para demarcarmos o estilo naturalista da prosa. Repare-se como as comemorações do 25 de Abril e do 1 de Maio já haviam inquietado tanta gente, entretanto esquecida de quão infundadas eram tais inquietações. Repito e sublinho infundadas, para que engulam em seco as preocupações do passado. Facto: em nenhuma dessas comemorações houve o que quer que fosse que pudesse contribuir para agravar a situação pandémica do país. O mesmo não pode ser dito de outras situações onde se verificaram surtos sem que tal gerasse preocupação ou comentário. É a tal perspicácia para escolher prioridades de que há pouco falava. Somos altamente selectivos.
Aqui chegados, convém desde já desfazer o primeiro mito: a proibição de festivais. Não perderei tempo a explicar por que razão a Festa do Avante não pode ser equiparada a um festival. Só quem nunca foi à Festa do Avante pode dizer tal coisa. Frequentador de festivais desde a retoma do vetusto Vilar de Mouros, não me recordo de alguma vez ter visto no Sudoeste, no Super Bock Super Rock ou no NOS Alive, fóruns públicos de debate dedicados a temáticas tais como as listas de espera nos hospitais, o crescimento do populismo e o reaparecimento de partidos fascistas, o estado da economia portuguesa, a violência doméstica, a sinistralidade nas estradas, entre outros assuntos sem interesse. Compreendo que se olhe preferencialmente para os concertos, a roda gigante, as barracas com comes e bebes, que é aquilo para onde os portugueses tendem a olhar. Nisto somos deveras democráticos.
Basta, no entanto, ler a Lei 19/2020 para entender o equívoco propagado por certa imprensa mais interessada em fomentar assunto do que em esclarecer as pessoas. No artigo 5.º, dedicado a “Festivais e espectáculos de natureza análoga”, a lei diz, e passo a citar, «Os espetáculos referidos no número anterior podem excecionalmente ter lugar, em recinto coberto ou ao ar livre, com lugar marcado, após comunicação nos termos do número anterior e no respeito pela lotação especificamente definida pela Direção-Geral da Saúde em função das regras de distanciamento físico que sejam adequadas face à evolução da pandemia da doença COVID-19.» Em célebre entrevista, a Ministra da Saúde explicou isto mesmo. E alguma imprensa compreendeu-o. Rádio Renascença, 8 de Maio: «Covid-19: Afinal, festivais são permitidos com lugar marcado e reembolsos só em 2022»; Blitz, 8 de Maio: «Há reembolsos mas afinal também pode haver festivais. A proposta de lei do Governo para a música ao vivo»; Expresso, 8 de Maio: «Covid-19. Afinal há festivais de verão».
O cancelamento de vários festivais de grande dimensão e muito populares teve na sua origem apenas e tão-somente a incerteza quanto ao estado da pandemia na data de realização dos mesmos, a viabilização financeira face à necessidade de reduzir lotações, as garantias e os compromissos assumidos com artistas internacionais caríssimos, a questão das deslocações aéreas, enfim, toda uma logística muito mais complexa do que aquela que permite a realização do Figueira Jazz Fest , o Vilas People, o Festival Afonso Lopes Vieira, as Noites de Faro, as Noites de Verão Gaia, entre outras, inúmeras, festas e festivais que estão a realizar-se um pouco por todo o país, com condicionalismos exactamente iguais àqueles que limitarão a realização da Festa do Avante. Compreendo que fiquem tristes por não poderem ver a Taylor Swift, mas não pretendam que a vossa tristeza me impeça de poder ver os Mão Morta.
No embalo da informação mentirosa sobre proibição de festivais, assistimos a toda uma campanha já costumeira de hipocrisia que levou um tipo como Luís Delgado a falar de “racismo político” em artigo recentemente publicado na Visão. Insuspeito de qualquer simpatia comunista, diz ele numa prosa intitulada com a pergunta «Qual é o dramalhão com a Festa do Avante?»: «E aquilo que é absolutamente inaceitável, inadequado e irresponsável, é achar que o PCP, e os seus militantes, ou simpatizantes, ou coisa nenhuma, mas que gostam da festa, são uns idiotas, que não querem saber nada da Covid 19 – estilo Bolsonaro – e que não agirão com todas as cautelas. Isto cheira a racismo político.» Cheira a racismo político, mas não só. Cheira a hipocrisia, nomeadamente quando se refere que a realização da Festa do Avante é uma troca de favores entre o actual Governo e o PCP. É tanto assim, quanto é um favor que o actual Governo faz à Igreja:
à organização do Rali Vinho Madeira:
à tauromaquia:
ou a outros espectáculos que estão a suceder de Norte a Sul do país:
Se podem valer de alguma coisa ao PCP, estas imagens serão um exemplo para os frequentadores da Festa do Avante. Não façam assim, façam melhor. Neste sentido, ainda que seja um acontecimento com relevância para as finanças do partido, que não goza da generosidade contributiva dos Jacinto Leite Capelo Rego que financiam outras forças políticas, a Festa do Avante pode ter, deverá ter, vai ter uma extrema relevância em termos pedagógicos, levando-nos a acreditar que é possível e até desejável que continuemos a viver e a nos divertir, a reunir e a comunicar, sendo organizados, tendo bom senso, adoptando precauções. Não me recordo de uma edição mais relevante da Festa do que a deste ano, quer pelo pânico de viver que é imperioso combater, quer pela paranóia securitária que se instalou com a pandemia e tem, paulatinamente, feito o seu percurso de invasão nos direitos fundamentais de liberdade cidadã, reerguendo muros que impedem o debate livre e obscurecem o discernimento crítico. Distanciamento social, diz-se hoje como se fosse um benefício para todos. Não é. Importa, mais do que nunca, lembrar que se trata de uma excepção momentânea.
Dito isto, cabe ainda reconhecer que me sensibilizam os argumentos daqueles que se mostram verdadeiramente preocupados com a questão da saúde pública. Dizem que a Festa resulta num ajuntamento que pode contribuir para a propagação da pandemia. Sou sensível a este argumento, mas com uma condição. Que ele valha o mesmo que vale para outros ajuntamentos, seja nos transportes públicos, seja nos locais de trabalho, nas praias, nos shoppings, nos jardins públicos, nas salas de espectáculos, etc, etc, etc. A Festa do Avante realiza-se num espaço aberto equivalente a 300000 metros quadrados, com uma lotação máxima de 33 mil pessoas para 100 mil possíveis. Para quem acabou de fazer um périplo pela Costa Vicentina, é no mínimo estranho, no máximo seria só patético, tanto temor com 33 mil pessoas distribuídas por 300000 metros quadrados. Sendo legítimo e compreensível, o argumento da preocupação peca por discriminação: zelo excessivo para com um evento específico (ainda por cima político), o mesmo zelo que outros eventos congéneres com aglomerados e ajuntamentos similares ou mais concentrados não inspiram. Mais grave, porém, é ser um argumento que passa ao lado do verdadeiro problema de saúde pública que estamos a viver neste momento em Portugal, e que, ao que parece, é mais lato do que a covid-19. Há um aumento da mortalidade no país que só indirectamente está relacionado com a covid-19. À força de estarem tão preocupadas com a pandemia, as pessoas esquecem-se de outras doenças e problemas de saúde que continuam a fazer vítimas todos os dias. Vamos falar do que realmente interessa?
Para terminar, devo dizer que o melhor argumento que ouvi até agora contra a realização da Festa do Avante surgiu de um militante do PCP. Sempre é curioso notar que, acusados de extrema ortodoxia, os comunistas ainda debatem e dialogam, contra o que seria de esperar por quem julga ser o PCP uma tirania obscurantista onde o contraditório é uma ameaça à razão. Parvoíces. E o argumento é simples: dado os constrangimentos, e até a pressão a que os frequentadores do recinto estarão sujeitos, o que há de celebração da liberdade na Festa está, à partida, minado e sabotado. Faz sentido, mas também por isso deve a Festa realizar-se. Não acontecerá nos moldes a que estamos habituados, a Carvalhesa não será dançada com abraços colectivos, a proximidade não será a mesma. Mereceremos também uma atenção da imprensa que jamais merecemos. Há deles que já salivam com eventuais falhas, lacunas, erros, e vocês irão ver o que será de reportagens sobre o Avante. Mas sobretudo, e mais importante do que qualquer outra coisa, é partir deste princípio de que há mais vida para além da covid-19. Por maiores e mais acérrimos que sejam os constrangimentos, as limitações, as regras, os impedimentos, estamos juntos na luta pela liberdade e pela defesa dos direitos de quem trabalha. Não há porra de pandemia que nos impeça de o lembrar, por maiores que sejam as limitações e apertados os açaimes. Outrora, também dentro das prisões se lutou contra a ditadura. Não é agora, que o fascismo cresce e ameaça se agrava, que devemos interromper a luta. Seja na rua, seja no Avante. Seja em Festa.
5 comentários:
saúde, camarada :)
Saúde.
Bom dia, acabei de vir de férias da Costa Vicentina. Acho que consegui fazer umas férias seguras, mas só porque não acampei com o meu guarda-sol à boca da praia. Em praias com muitos metros quadrados de areia e apenas um acesso, as contas matemáticas de distribuição por m2 dividindo o total da área pelo total de pessoas são "um pouquinho" erradas. Tenho pena que o partido comunista não tenha percebido isso, que não tenha percebido que ninguém quer proibir comícios, que não tenha percebido que muitos dos que se indignam com esta festarola são seus eleitores e que o custo em votos pode ser maior que o custo da falta do espectáculo. A minha família sempre foi de esquerda, alguns comunistas activos. Mas quando não agradou ao partido o meu avô foi chamado de fascista. Outros continuaram a acreditar que era necessário uma oposição forte, com princípios, para defender os mais fracos. Agora, discordando desta atitude e deixando de votar no vermelho, vou provavelmente ser rotulada de populista, ou de ter fraco intelecto e me deixar levar por retóricas com interesses encapotados mesquinhos, mas talvez finalmente perceba o meu avô. Para finalizar gostaria de assinalar a hipocrisia das direcções de saúde, que criticaram duramente um encontro profissional onde estive com 15 pessoas, a maioria das quais trabalha diariamente umas com as outras, porque veio a descobrir-se que um de nós estava infectado. Disseram-me, alto e bom som ao telefone, que era uma irresponsabilidade no estado em que o país está juntar os colegas, e que a possibilidade de "ajuntamentos" até 20 pessoas foi pensada para membros da mesma família. O que vale é que a família comunista é grande! Ana
"Acho que consegui fazer umas férias seguras". Eu também, mas não tenho a certeza. Importante é que as possamos ter feito de acordo com as medidas que cada um de nós julgou correcto respeitar para minimizar riscos. O mesmo vale para a realização da Festa.
"Tenho pena que o partido comunista não tenha percebido isso, que não tenha percebido que ninguém quer proibir comícios, que não tenha percebido que muitos dos que se indignam com esta festarola são seus eleitores e que o custo em votos pode ser maior que o custo da falta do espectáculo." Não entendo o que é que o PCP não percebeu relativamente à distribuição de pessoas pelos areais, também não vi ninguém do PCP a queixar-se de que lhe queriam proibir comícios. E muito me desgostaria se o partido começasse a meter à frente dos seus princípios os "custos em votos", num tacticismo calculista e hipócrita que nada tem que ver com convicções e ideais.
Não comento casos pessoais dos outros, mas sempre vou adiantando que na minha família só um tio-avô era comunista. E uma tia também o foi em tempos, apesar de ter votado Cavaco para a PR. Quanto ao mais, era e é tudo soarista.
"Vou provavelmente ser", "vou alegadamente ser", talvez, quem sabe, possivelmente, hipoteticamente... Calma. Se alguém lhe chamar nomes pelas opções que democraticamente tomar, pode sempre queixar-se ao Ministério Público. :-)
A DGS dá indicações, não faz leis. Que eu saiba.
Gosto do seu nome, lê-se para a frente e para trás. Saúde.
Saúde para todos! anA
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