sexta-feira, 28 de agosto de 2020

SCALINATELLA



 

8.
 
Desfez-se a coroa de geleia que rodeava
a cidade. Aqui nasci entre fuligens
e gente escrupulosamente perdida,
blues sangrado numa harmónica afiada,
e a minha boca não mais
beijou a pureza.
Alteraram-se-me os ossos quando vi
essa grande nuvem, funesto cavalo marinho,
abater-se sobre o porto incompetente,
sobre os estendais ataviados de suor,
sobre a fotografia da minha
família estafada.
Agora não havia história, era eu e o mar
misturado aos humores do céu,
novamente o blues e o seu esgar de nojo,
a sua esmola de amor.
Nunca pensei em estudar nada que me fosse útil.
Para isso haverá revólveres e pneus,
e nenhuma coisa que a essas se assemelhe
me poderia curar do que tenho.
Algodões infectos, balões de soro que flutuavam
pelos tectos fugidios e encardidos,
o meu médico soube de imediato que eu haveria
de levar outra vida: era o blues.
Quando me suceder parar a meio da praça,
onde já o subterrâneo freme nos carris de outra poesia,
penso na serena convulsão das cidades,
desmontando-se e montando-se como os dentes
de um louco que a minha insónia me oferece,
tantas vezes empoleirado no tamborete azul
onde a minha cozinha encontra repouso.
E o meu bairro é uma cadência dos campos de algodão,
esses sim puros, ternamente mastigados
pelo sol da existência,
e sempre um comboio bolçando enormes chifres
de carvão, para que no firmamento se escreva
a minha (?) luta intestina.
A morte vencerá, é claro, exceptuando talvez
se lhe adiantarmos tudo: celofanes, selos timbrados,
vasos de flores, cada porta
do nosso ódio.
A coroa de geleia escorre crepuscular,
partiu um táxi provavelmente destinado ao coração
do desemparo, raparigas saltitam pelo elástico
do meu silêncio, e eu, que tenho estado quieto,
acendo-me de relâmpagos, como a boca do vulcão,
e esfrangalho o ar com o meu
blues meridional.
 
 
Vasco Gato ( n. 1978), in Napule (2011). Em 2016 reuniu num só volume, intitulado “Contra Mim Falo” (Imprensa Nacional-Casa da Moeda), toda a sua produção poética desde “Um Mover de Mão” (2000). Alterações ligeiras em alguns poemas demovem-nos de considerar ter havido nesse volume uma intenção de reorganizar, sendo mais exacto falar de um ligeiro apuramento que não alterou significativamente as características iniciais de cada um dos títulos coligidos (12 ao todo). A busca inicial de uma linguagem pura começa por aproximar da Natureza a poesia de Vasco Gato, num tom intimista onde o desamparo e a fragilidade do humano se revelam no confronto com a grandeza do universo. Não há-de ser por acaso o interesse pela expressão poética ameríndia, assim como a epígrafe pedida de empréstimo a Thoreau para um dos primeiros poemas. Na senda do que vislumbramos em Herberto Helder, uma das influências mais evidentes na poesia deste autor, o encontro com o mundo natural edifica uma voz em relação com um outro que ao segundo livro assume contornos algo místicos, misteriosos, esotéricos: «É possível a intimidade com o mistério». A poesia aparece enquanto experiência desta intimidade, enquadrada em paisagens enigmáticas, porventura oníricas, de recolhimento e de retiro interior. Muito dissemelhante na forma, a poesia de Vasco Gato começa porém a sofrer uma certa inflexão com o poema longo “Lúcifer” (2003). É aí que encontramos o gérmen de uma poesia mais sua, descolando-se das óbvias e naturais influências: «Há muito que desejo romper / este cordão umbilical, ampliar-me». Este poema é o pórtico para um lirismo altamente conseguido quando encena dramas amorosos, colocando no tabuleiro metafórico a identidade do sujeito poético — “A Prisão e Paixão de Egon Schiele” (2005) —, ou quando se apropria de referências culturais várias para indagar os princípios do poético —“Omertà” (2007) —, ou simplesmente quando assume a queda desamparada do sujeito num real que estilhaça com inteligente sentido crítico. O «país de amputados» em “Rusga” (2010), o mediterrâneo de “Napule” (2011), o «leito quotidiano» de “A Fábrica” (2012), resultam como que preâmbulos a uma carta de pai para filho, nesse extraordinário “Fera Oculta” (2014), onde os podres do mundo assomam ao poema fazendo deste, ao mesmo tempo e com a mesma intensidade, lugar de denúncia e de libertação. Sem cederem ao facilitismo de um registo meramente acusatório, de tipo confessional, politicamente interventivo, civicamente empenhado, quase sempre datado, estes poemas de Vasco Gato equilibram com mestria o que há do mundo no indivíduo e o que pode haver do indivíduo-sujeito-poético no mundo.

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