Inalo, em
degustação demorada, as ondas invisíveis que flutuam do teu cheiro. Tudo
disforme, nos lençóis amarrotados e no calor do amanhecer feroz
—
contrastante com a calmaria do Soul
de fundo
[que também chega em ondas, da telefonia,
baixinho,
“olha os vizinhos!”].
Qual é o plano?
Para onde fugimos hoje? Fundimo-nos com o sofá a devorar os mesmos episódios
das mesmas séries com gargalhadas recicladas e beijos em entrevistas melosas às
bochechas?
(e os próprios beijos, quando encontram
lábios nos lábios e não há televisão, olhos fechados e não vale espreitar)
Vamos àquele
restaurante dos betos onde nos cumprimentam sempre em inglês à entrada? Navegam
as ideias às duas e às três de cada vez, o Soul
de fundo e a inveja dos vizinhos silenciosos que abrem as janelas de sobrolho
franzido à espera de mais uns decibéis para decifrar o destino de hoje.
Críticas à loiça
num cruzar de olhares sem palavra alguma. Na cabeça ciranda a fala: — “viste bem este ‘design’ em que dão de comer
à turistada?”,
com vista para
um grupo de alemães, na última mesa ao canto, a pedir mais canecas e a
avermelhar os rostos no sol e no álcool.
A areia que vão
largando no chão do restaurante é compensada com gorjetas recheadas de vergonha
e uma pitada de “gracias” pelo
caminho com uns Rs inglesados e
sorrisos falsos a ripostar com “obrigado”
de secura de Verão, mas hostilidade de carneiro porque “está toda a gente a ver e a cliente tem sempre razão”
[é pena o dicionário do cliente não ter a
mesma razão que o dono quando a península fala toda o mesmo, pior, quando os “latinos”
têm um instinto poliglota que serve de incentivo extra à preguiça de quem veio
de visita e está offline para saber agradecer como os locals. Mas enfim,
deixaram good tips!].
Manuel Seatra (n. 1995), in Raiz Densa no Pátio da
Garganta (Douda Correria, Fevereiro de 2020). Estreou-se com Dias de Folga
(Setembro, 2018). Os poemas em prosa de Raiz Densa no Pátio da Garganta têm
Lisboa como palco e o quotidiano na capital em pano de fundo. Das três partes
que compõem o livro, a primeira é a mais extensa. Na segunda parte a memória
intromete-se para recuperar cenários da infância, sempre num plano onde
sobressai a vida doméstica enquanto cenário onde os sonhos e as utopias vão
sendo desmentidos pela realidade: «A cama está a afundar e não tenho tempo para
mais imagéticas alagadas em metáforas cansativas e desnecessárias» (p. 38).
Tudo vale no terreno do poema, de um passeio pela Almirante Reis a uma ida ao
dentista, o dia-a-dia cumpre-se num registo irónico enxertado pela
coloquialidade descontraída de quem assiste ao desenrolar das horas. Uma névoa
de nostalgia assalta, por vezes, o discurso, mas logo a banalidade dos dias
desperta o sujeito para o que se impõe como necessidade: «É quando penso sobre
o que quero dizer que me lembro do que vou pensando sem o dizer» (p. 51). As
contradições do mundo moderno têm neste nó desatado da garganta um retrato
fiel.
Sem comentários:
Enviar um comentário