terça-feira, 29 de dezembro de 2020

BEIJOS E BARREIRAS LINGUÍSTICAS


 

 
   Inalo, em degustação demorada, as ondas invisíveis que flutuam do teu cheiro. Tudo disforme, nos lençóis amarrotados e no calor do amanhecer feroz
   — contrastante com a calmaria do Soul de fundo
   [que também chega em ondas, da telefonia, baixinho,
   “olha os vizinhos!”].
 
   Qual é o plano? Para onde fugimos hoje? Fundimo-nos com o sofá a devorar os mesmos episódios das mesmas séries com gargalhadas recicladas e beijos em entrevistas melosas às bochechas?
   (e os próprios beijos, quando encontram lábios nos lábios e não há televisão, olhos fechados e não vale espreitar)
   Vamos àquele restaurante dos betos onde nos cumprimentam sempre em inglês à entrada? Navegam as ideias às duas e às três de cada vez, o Soul de fundo e a inveja dos vizinhos silenciosos que abrem as janelas de sobrolho franzido à espera de mais uns decibéis para decifrar o destino de hoje.
 
   Críticas à loiça num cruzar de olhares sem palavra alguma. Na cabeça ciranda a fala: — “viste bem este ‘design’ em que dão de comer à turistada?”,
   com vista para um grupo de alemães, na última mesa ao canto, a pedir mais canecas e a avermelhar os rostos no sol e no álcool.
   A areia que vão largando no chão do restaurante é compensada com gorjetas recheadas de vergonha e uma pitada de “gracias” pelo caminho com uns Rs inglesados e sorrisos falsos a ripostar com “obrigado” de secura de Verão, mas hostilidade de carneiro porque “está toda a gente a ver e a cliente tem sempre razão”
   [é pena o dicionário do cliente não ter a mesma razão que o dono quando a península fala toda o mesmo, pior, quando os “latinos” têm um instinto poliglota que serve de incentivo extra à preguiça de quem veio de visita e está offline para saber agradecer como os locals. Mas enfim, deixaram good tips!].
 
Manuel Seatra (n. 1995), in Raiz Densa no Pátio da Garganta (Douda Correria, Fevereiro de 2020). Estreou-se com Dias de Folga (Setembro, 2018). Os poemas em prosa de Raiz Densa no Pátio da Garganta têm Lisboa como palco e o quotidiano na capital em pano de fundo. Das três partes que compõem o livro, a primeira é a mais extensa. Na segunda parte a memória intromete-se para recuperar cenários da infância, sempre num plano onde sobressai a vida doméstica enquanto cenário onde os sonhos e as utopias vão sendo desmentidos pela realidade: «A cama está a afundar e não tenho tempo para mais imagéticas alagadas em metáforas cansativas e desnecessárias» (p. 38). Tudo vale no terreno do poema, de um passeio pela Almirante Reis a uma ida ao dentista, o dia-a-dia cumpre-se num registo irónico enxertado pela coloquialidade descontraída de quem assiste ao desenrolar das horas. Uma névoa de nostalgia assalta, por vezes, o discurso, mas logo a banalidade dos dias desperta o sujeito para o que se impõe como necessidade: «É quando penso sobre o que quero dizer que me lembro do que vou pensando sem o dizer» (p. 51). As contradições do mundo moderno têm neste nó desatado da garganta um retrato fiel.  

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