A nota biobibliográfica na antologia Voo
Rasante (Mariposa Azual, Fevereiro de 2015) é omissa quanto ao ano de
nascimento, mas informa que a autora publicou poesia, ensaio e ficção em
revistas portuguesas, inglesas e italianas. À data, já havia publicado por cá
Dívida Soberana (Mariposa Azual, 2012), com o qual foi finalista do Prémio
Revelação da APE em 2010. Desconheço outros livros de Susana Araújo, além desse
e deste Discurso Aos Pacientes Cirúrgicos (não (edições), Setembro de 2020). Se
o primeiro me havia agradado, pela forma como se inscrevia num tempo concreto
sem, por isso, correr o risco de achar-se datado, neste essa mesma inscrição abre-se
a outros planos da existência e, por consequência, a outras possibilidades da poesia
enquanto moldação da linguagem.
Em quatro partes, a organização dos poemas sugere uma narrativa relacionada com um processo de convalescença. Cada uma das secções é introduzida por um texto em prosa cuja função explicativa não descarta do discurso uma certa ironia. Preâmbulo Clínico: Strāges: «Nem sempre é possível dizer onde começa um acidente e onde termina um problema crónico» (p. 11). Preâmbulo Clínico: Néctares Operatórios: «O médico pergunta-me se quero ter mais detalhes sobre o procedimento. Quero saber apenas sobre a anestesia: tenho medo de acordar durante a operação quando me fizerem o primeiro corte» (p. 29). Estes preâmbulos antecedem conjuntos de poemas que retratam um corpo em recuperação, do sinistro à alta hospitalar, mapeando tanto a envolvência da situação clínica como a anatomia de um espírito desassossegado pelas circunstâncias físicas em que o sujeito se encontra.
Se no livro anterior de Susana Araújo me havia agradado a vinculação da poesia a uma emergência social, neste agrada-me sobretudo o vínculo ao corpo enquanto palco onde tudo acontece. São diversos os recursos poéticos de que se serve para explorar esta fisicalidade no e do poema, intrometendo-se por vezes no campo da experimentação com resultados que logram em partes iguais despertar-nos a curiosidade e divertir-nos. No poema Por Arquivar, por exemplo, à elevação de cada uma das letras da palavra membros corresponde a sugestão de um corpo a levitar. Imunidade/Impunidade é um caligrama que nos envia para a grande onda de Hokusai. Em Sala de espera estamos no domínio do haiku. Há ainda exercícios bilingues, como já sucedia no livro anterior da mesma autora, e evocações de Emily Dickinson, William Wordsworth, Virginia Woolf, rodeadas de um complexo lexical respigado no campo da medicina.
O que não se perde de todo é a inclinação para uma poesia embrulhada nos problemas do mundo, capaz de reflectir o seu tempo sem a ele se reduzir. Veja-se como isso acontece no poema Tratamento de Detritos (p. 75):
Se a China banir a importação
de lixo
onde irão morrer as nossas imagens
onde fundiremos o chumbo, o
cádmio
as dioxinas, os ftalatos e o cheiro a
homens e ratos?
Como separaremos a culpa da
cura
enterraremos os natimortos?
Onde espalharemos o sal?
Como reciclaremos os restos
deste leprosário ocidental?
Discurso aos Pacientes Cirúrgicos tem este
lado irónico de, partindo de uma experiência aparentemente pessoal, se dirigir
a todos nós, pacientes de um tempo concreto, metidos em unidades de cuidados
continuados a que hiperbolicamente chamamos de vida. A autora quis chamar-lhe
discurso e não foi por acaso. Estes poemas têm essa função discursiva esculpida
em cada um dos seus versos, são uma hábil metáfora deste mundo que calhou ser
nosso. E de uma doença que é a de todos nós enquanto parte integrante desse
acidentado mundo.
Em quatro partes, a organização dos poemas sugere uma narrativa relacionada com um processo de convalescença. Cada uma das secções é introduzida por um texto em prosa cuja função explicativa não descarta do discurso uma certa ironia. Preâmbulo Clínico: Strāges: «Nem sempre é possível dizer onde começa um acidente e onde termina um problema crónico» (p. 11). Preâmbulo Clínico: Néctares Operatórios: «O médico pergunta-me se quero ter mais detalhes sobre o procedimento. Quero saber apenas sobre a anestesia: tenho medo de acordar durante a operação quando me fizerem o primeiro corte» (p. 29). Estes preâmbulos antecedem conjuntos de poemas que retratam um corpo em recuperação, do sinistro à alta hospitalar, mapeando tanto a envolvência da situação clínica como a anatomia de um espírito desassossegado pelas circunstâncias físicas em que o sujeito se encontra.
Se no livro anterior de Susana Araújo me havia agradado a vinculação da poesia a uma emergência social, neste agrada-me sobretudo o vínculo ao corpo enquanto palco onde tudo acontece. São diversos os recursos poéticos de que se serve para explorar esta fisicalidade no e do poema, intrometendo-se por vezes no campo da experimentação com resultados que logram em partes iguais despertar-nos a curiosidade e divertir-nos. No poema Por Arquivar, por exemplo, à elevação de cada uma das letras da palavra membros corresponde a sugestão de um corpo a levitar. Imunidade/Impunidade é um caligrama que nos envia para a grande onda de Hokusai. Em Sala de espera estamos no domínio do haiku. Há ainda exercícios bilingues, como já sucedia no livro anterior da mesma autora, e evocações de Emily Dickinson, William Wordsworth, Virginia Woolf, rodeadas de um complexo lexical respigado no campo da medicina.
O que não se perde de todo é a inclinação para uma poesia embrulhada nos problemas do mundo, capaz de reflectir o seu tempo sem a ele se reduzir. Veja-se como isso acontece no poema Tratamento de Detritos (p. 75):
onde irão morrer as nossas imagens
as dioxinas, os ftalatos e o cheiro a
homens e ratos?
enterraremos os natimortos?
deste leprosário ocidental?
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