terça-feira, 1 de dezembro de 2020

EDUARDO LOURENÇO (1923-2020)

 


(...)

É humano sentir-se cansado ao fim duma obra. O nosso poeta cansou-se e adormeceu entre as patas poderosas da sua criatura. Durante a noite o vento do deserto (e todos os criadores serão conduzidos ao deserto em certas horas, como o Cristo) arrastou a areia e cobriu com ela as raízes da criatura e o seu criador. Quando veio a manhã foi assim, sem autor e desfigurada, que a obra apareceu aos outros que por acaso a encontraram no caminho. Então puseram-se a interrogá-la longamente pelo dia adiante. A interrogar o silêncio. Como admirarmo-nos se o silêncio não respondeu? Mas esses homens eram professores, críticos, gente imensamente sensata que não tem descanso enquanto não encontra um nome para se livrar de tudo quanto é grave e inquietante e para quem é grave e inquietante tudo quanto não tem um nome. Professores, no sentido de Kierkegaard. Desesperados do estranho animal silencioso, ao fim do dia concluíram estar na presença não dum enigma qualquer, mas da essência mesma do enigma. Era o mistério abrupto dum monstro sem sentido e sem autor. Seria excelente se tivessem ido embora em silêncio. Teriam respeitado o silêncio. Mas era necessário catalogar o fenómeno. Chamaram-lhe então «Esfinge» que significa «mistério». Como progresso era notável. Mas ficaram satisfeitos porque imaginaram com razão que o seu autor (se tinha autor) não encontrara um nome para a sua obra. Na verdade ninguém tem nome para si próprio. O resto é a história banal dum equívoco com excelente propaganda como é o dos professores. Eles desertaram o deserto para anunciar por toda a parte que surgira um enigma novo. Como poderiam imaginar (esses homens sem imaginação) que a resposta ao sorriso feminino da obra jazia sob eles, no poeta adormecido por uma só noite em que não pôde vigiar a sua criatura?

(...)

Eduardo Lourenço, in Tempo e Poesia, Relógio D'Água, 1987, pp. 29-30.

Sem comentários: