segunda-feira, 30 de novembro de 2020

"DA LADROAGEM E DA EDIÇÃO ÀS TRÊS PANCADAS"

 

Publicou a Língua Morta, em Julho deste ano, uma antologia com o título O Meu Livro de Cabeceira é Um Revólver, organizada pelo poeta e tradutor Jorge Melícias (n. 1970). Devo dizer, a bem da verdade, que tive conhecimento desta antologia alguns meses antes da mesma aparecer anunciada pela editora em causa. Desconhecia o conteúdo, que me foi proposto para o weblog que dinamizo, mas que cordialmente recusei por não ser vocação da Antologia do Esquecimento transformar-se num weblog colectivo. Ainda assim, reitero a Jorge Melícias o agradecimento que então lhe fiz pela cordialidade da oferta, a qual interpretei como ponto de encontro de uma admiração por ambos partilhada relativamente a autores que levaram ao limite a sua existência enquanto criadores. O meu livro Suicidas (Deriva, 2013) tornou clara esta admiração, e se a ele me refiro agora é pelo trabalho que então me deu de busca, investigação e tentativa de compreensão de um fenómeno humano inesgotavelmente complexo. 

Foi pois com entusiasmo que, no passado dia 24, depois de um encontro com alunos na Biblioteca Municipal de Caldas da Rainha, me desloquei até Óbidos para adquirir a referida antologia. Qual não foi o espanto quando, ao folhear o índice, deparei com diversos nomes que me eram totalmente desconhecidos.  A ignorância não tem limites, menos ainda a minha. Parti para a leitura das notas biográficas que acompanham a obra, as quais suponho serem da responsabilidade do antologiador. O editor em causa já fez saber que só quis preocupar-se com as datas de nascimento, as quais terá cotejado com o que acerca dos autores em causa se encontra divulgado na Internet. A desconfiança de que algo não batia certo surgiu à leitura da terceira nota, dedicada a um tal de Tomás González. Aí se informa tratar-se de uma personagem fictícia saída da imaginação do escritor espanhol Eliseo González, autor de uma suposta antologia intitulada Galería de Suicidas. A curiosidade levou-me a buscar informação sobre esta putativa antologia, não demorando muito que ficasse estupefacto com o que fui encontrar. 

Na realidade, Galería de Suicidas é uma obra de ficção publicada, em 2003, pela editora Huerga & Fierro. Como todas as referências ao autor apontavam para Burgos, tratei de vasculhar um pouco. A 7 de Setembro de 2003, o Diario de Burgos dedica uma folha ao livro de González. Aí se lê, em artigo assinado por R. Pérez Barredo, que «através de doze heterónimos o autor radiografa os subterrâneos da dor, da loucura, da criação, da derrota e do amor» (tradução minha). Já o entretanto falecido Jorge Villalmanzo, com quem González teve projectos comuns, desenvolveu o tema afirmando que «Galería de suicidas é uma antologia de poetas “tombados” e da sua poesia – ficcionada e poetizada por este autor indefinível» (tradução minha). No mesmo jornal, a 9 de Novembro de 2003, Ricardo Ruiz assina uma crítica ao livro onde diz que a «sua poesia parece poesia mas não é; a sua prosa parece narrativa, mas também não o é. Poeta e prosador em partes iguais, e desiguais, na obra de Eliseo González nada é o que parece… Tudo é verdade porque tudo é mentira» (tradução minha). Tudo isto escapou quer ao editor Diogo Vaz Pinto, quer ao tradutor e antologiador Jorge Melícias, o que seria desculpável se o deslize tivesse na sua origem apenas o deslumbramento causado pelo conteúdo da obra em causa. Mas não é apenas de deslumbramento que estamos a falar. 

Quem ler as notas biográficas do livro de Eliseo González, compreensivelmente decalcadas na antologia da Língua Morta, fica perplexo com a romanceação da morte e da dor, com as contradições e impossibilidades que sugerem de imediato estarmos perante uma obra de ficção. Não é só o facto de praticamente nenhuma informação se encontrar sobre esses autores na internet, apontando toda a que se encontra para o livro de Eliseo González. É a própria pseudo-informação divulgada na antologia da Língua Morta. Alguns exemplos: sobre Paula Sinos pouco mais se sabe além do que vem no relatório do maquinista de comboios que teria abalroado a poetisa: «Travei, mas era tarde. Jamais esquecerei aquele rosto, o seu estúpido olhar…» (p. 147). Sobre um tal de León Artigas há a referir «o profundo arrependimento por não ter dado ouvidos ao seu pai (que, aparentemente, dirigia uma serralharia) e por não ter dedicado a sua vida a martelar» (p. 148). Isto parece-vos credível? A propósito de José Ignacio Fuentes refere-se a publicação de um livro que teria sido «um verdadeiro fenómeno, atingindo números de vendas raramente vistos em Espanha» (p. 150). O livro chama-se Los Heraldos del fin (1990). Quem o conseguir encontrar leva prémio. Não deverá ser difícil, é obra relativamente recente. A cereja no topo do bolo prova-se, no entanto, na  biografia dedicada a um suposto Víctor Ramos. Teria nascido em 1960, mas aos 10 anos, em 1970, já tinha fundado o Movimiento de Guerreros Antigays. Porquê? Porque não suportava a sua própria orientação sexual. Vai daí andou por programas de rádio e televisão a casquinar nos homossexuais, foi acusado de estar na génese de uma série de suicídios e acabou a matar-se, na prisão, sangrando «até à morte por castração auto-infligida» (p. 152). Incrédulos? Não fiqueis. Se tanto o editor Diogo Vaz Pinto como o tradutor Jorge Melícias julgaram isto credível, por que havemos nós de desconfiar? 

Temos, desta arte, uma antologia de 17 suicidas em que 8 não o foram porque nem sequer chegaram a nascer. Estes 8 são produto da imaginação de um escritor espanhol que está neste momento parcialmente publicado em Portugal sem que faça a mínima ideia do facto (tenho o e-mail dele, caso o pretendam contactar para felicitações). Tudo isto podia ter graça não fosse lamentável. Melícias é um excelente tradutor, não é isso que está em causa. Vaz Pinto, deveras aguerrido na defesa de uma ética e rigor que pretende impor aos outros mas se dispensa de honrar, também não deverá ser crucificado por este lapso. Diz que se deixou levar pela confiança depositada no tradutor, que é um editor de textos e não mais. Bem, a ideia que fazemos de um editor é ligeiramente mais exigente. O título deste post, de resto, copia palavras do próprio a propósito do famigerado “caso fraudulento da Cristina Bartleby”. Não me peçam para lembrar o que isso foi. 

Enquanto leitor, é-me apenas lamentável que extraordinários poetas como Alfonso Costafreda ou Pedro Casariego Córdoba surjam misturados com uma teia heteronímica que acaba por tornar risível o que, na verdade, não o é. Não havia necessidade nenhuma para que assim fosse, até porque não faltariam nomes de poetas suicidas para acrescentar aos que de facto o foram. Jorge Melícias já traduziu alguns que não surgem nesta antologia. Que cada um retire daqui as suas conclusões. A minha é simples, a ideia de que o espírito crítico e a desconfiança, mais de nós próprios do que dos outros, tem vindo a levar nos últimos anos bordoadas fatais resulta nesta salgalhada. Embora nada tenha que ver com o assunto, se fosse ao editor ou ao tradutor entraria em contacto com Eliseo González quanto antes. Ele merece saber que foi publicado em Portugal. 



Adenda: faltou dizer que foi a propósito desta antologia que o escritor valter hugo mãe escreveu isto: «Creio que todos pressentimos que o suicídio é o manifesto de coerência do poeta.» Curiosamente, dois dos poetas que cita no seu artigo são heterónimos de um escritor espanhol que está vivo, para incoerência do próprio. 

11 comentários:

Jorge Melícias disse...

Comentário deixado na caixa de comentários do blogue "O melhor amigo" e que não chegou a ser publicado pelo Diogo Vaz Pinto:

O que o editor da Lingua Morta se esqueceu de dizer é que fui eu, quando confrontado com uma leitura diferente da minha, neste caso feita pelo Henrique Fialho (de que todos os poetas antologiados na Galeria de poetas suicidas seriam desdobramentos do próprio Eliseo González e não apenas um único poeta, Tomás González, como terei depreendido) quem se aprontou a escrever ao editor em questão para lhe dar conhecimento desse flagrante engano (a tal vaga troca de e-mails que lhe terá chegado à atenção). Nada no livro em causa encerra em si a definitiva solução para esta esfinge, mas dou a mão à palmatória pelo meu erro relativamente à verdadeira autoria dos poemas de 7 dos 17 poetas antologiados na antologia publicada pela Língua Morta. De resto já me penitenciei junto do editor, junto do Henrique, na sua qualidade de leitor, e aproveito o ensejo para endereçar as minhas desculpas a quem quer que possa, inadvertidamente, ter induzido em erro. Ao Eliseo González escreverei pessoalmente assim me inteire do seu endereço electrónico.

O resto são os dislates e as atordoadas a que este personagem já nos habituou, todo ele feito de recadinhos e de uma legião de fantasmas profundamente desinteressantes. E a isso ocorre-me dizer apenas que enquanto não cair no Diogo Vaz Pinto nem tudo está perdido, significando apenas, por exclusão de partes, que aquilo que faço não poderá estar completamente errado.

Com a certeza de que esta situação apenas abriria nos lábios de Eliseo González um franco sorriso pelo logro do seu logro, e de que os poemas, esses, pelo menos, existem e que têm uma qualidade assinalável, deixo uma ligação para um site onde nos comentários se podem ler algumas inquirições a propósito da real existência de um dos poetas em questão, Tomás González, a quem na antologia agora discutida acaba por ser atribuída uma vida fictícia:

http://lunaceronte.blogspot.com/2009/08/el-ultimo-poema-9-tomas-gonzalez.html

hmbf disse...

Caro Jorge, se quiseres fazer algum esclarecimento adicional posso publicá-lo no weblog cà laia de direito de resposta. Entretanto consegui o e-mail do Eliseo González. Se quiseres, posso facultá-lo.

Jorge Melícias disse...

Agradeço o e-mail do Eliseo Gonzàlez.

Pouco tenho a acrescentar, como um homenzinho assumo o erro, erro do qual, estou em crer, o mundo não se ressentirá muito amanhã, ocupado que anda com outras mortandades.
Não se tratando de uma compilação necrológica nem de uma recolha de elogios fúnebres não creio mesmo que poetas como Alfonso Costafreda ou Pedro Casariego Córdoba se importariam muito com a presença, a seu lado, de alguns poemas tão impressivos como os que ali se alinham.

Terei sido demasiado romântico, pouco avisado, ignorante, até, e ao contrário do editor da Língua Morta isso não me serve de desculpa, mas, por uma vez, leiam os poemas e deixem lá as exéquias ou a contraprova do bafo no espelho. O resto é assunto para notários e outros amanuenses.

Jorge Melícias disse...

Já agora, e só mesmo para finalizar este assunto que ele não tem assim tantas pernas para andar, gostava apenas que me explicasses onde é que aqui vislumbras ladroagem? Foi assim uma palavra que te ocorreu ou há aí algum pensamento estruturado? É que, sem querer ser demasiado aristotélico, eu vejo, simplesmente, um engano, uma ignorância, não intenção de dolo. Não me apropriei de nada, não fiz passar por meu nada que não me pertencesse, bem pelo contrário, pequei por excesso de literalidade. Quanto à edição ela é até bem bonita, gosto sobretudo da gramagem do papel.

hmbf disse...

Está explicado no meu post, a frase cita o editor da obra:

«Vaz Pinto, deveras aguerrido na defesa de uma ética e rigor que pretende impor aos outros mas se dispensa de honrar, também não deverá ser crucificado por este lapso. Diz que se deixou levar pela confiança depositada no tradutor, que é um editor de textos e não mais. Bem, a ideia que fazemos de um editor é ligeiramente mais exigente. O título deste post, de resto, copia palavras do próprio a propósito do famigerado “caso fraudulento da Cristina Bartleby”. Não me peçam para lembrar o que isso foi.»

E podes ficar descansado, ele até diz na introdução que foste prudente na escolha que fizeste. O que é chato, até a mim me chateia, é agora vir chutar para canto como se não fosse nada com ele. Enfim, nada que não fosse previsível.

Jorge Melícias disse...

O que é verdadeiramente tacanho é que isto, no fundo, tenha tão pouco que ver com a obra citada, quanto maia com poesia, e tanto que ver com as tão monótonas como sempiternas fisgadas entre ti e o Vaz Pinto.

hmbf disse...

Ó meu caro, não queiras tu também chutar para canto. Era o que mais me faltava, serem os teus erros e os erros do Diogo responsabilidade minha. Bem, sugiro que vás dormir ou ainda acabas a dizer que fui eu que fiz a antologia.

Jorge Melícias disse...

É mesmo o que eu tenho feito deste o início deste assunto, chutar para canto. Vá, vai lá tu dormir e dá algum descanso aos teus muitos ressabiamentos.

hmbf disse...

Claro. O ressabiado sou eu. 😁

Unknown disse...


O livro é excelente, parabéns ao Sr. Melícias e o livro do Eliseo Gonzàlez galeria de suicidas (tenho-o aqui) espantoso. Hoje, uma raridade.
Agora o que me intriga é o seguinte: se o senhor Melícias não sabia que aqueles 8 poetas eram personagens fictícias e o seu criador o Gonzalez, é porque não conhecia o livro nem o autor. Então onde descobriu aqueles poemas?

Unknown disse...

E no que diz respeito a direitos de autor, pode- se traduzir e publicar os poemas sem autorização do autor ou da editora?