quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

TRÊS CLIQUES À ESQUERDA / CANCRO

 

O que pode a literatura fazer pelo mundo? Não é fácil responder a uma questão destas. Em tempos, a literatura ofereceu explicações do mundo. Ao mesmo tempo que fixou mitologias e cosmogonias, ela serviu para transmitir a lei, foi a base a partir da qual civilizações diversas se estruturaram. Veio depois o tempo dessa mesma literatura se amotinar contra as estruturas. Já não estava em causa servir o sistema, mas registar o pensamento e as suas contradições. A relativamente recente massificação do ensino, da leitura, do acesso aos livros, acabou por subverter este papel sublevador integrando a literatura no sistema, transformando-a em mercadoria. O que hoje se apresenta diante de nós é um labirinto sem saída. Falamos da literatura enquanto lugar de resistência, mas resistência a quê? Suponho que ao falarmos de resistência estejamos a referir-nos às armadilhas de um sistema que tende a integrar na sua máquina de padronizar tudo quanto se lhe oponha. As estratégias de aculturação colonialista não terminaram com a extinção das colónias, mantêm-se vivas no modo como as forças no poder atacam o pensamento crítico privilegiando a narrativa dos consensos. O resultado é uma amorfia generalizada. O indivíduo que há no cidadão tende a desaparecer, dando lugar ao consumidor que se procura seduzir. É preciso proteger o consumidor, daí que o sistema coloque à disposição um livro de reclamações cujo efeito imediato é amenizar a raiva daquele que se sente mal servido.
   A sacralização do consumismo faz de cada um de nós, quotidianamente e em proporções similares, pequenos senhores e escravos voluntários. As redes sociais fomentaram esta perversidade de um modo surpreendente, promovendo os tiranetes que dentro de cada um de nós praticam a censura manifestando ódio à censura. Somos senhores do nosso território bloqueando quem se aproxima de uma forma que nos desagrade, somos escravos voluntários aceitando a discriminação higienista da máquina que alimentamos com os nossos conteúdos. Isto não é assim apenas nas redes sociais, onde o clima de guerrilha, apesar de tudo, tem o mérito de não entupir as urgências hospitalares. Já não estamos tão certos quanto ao contributo que possam vir a ter para o incremento da psiquiatria.
   Afastando o cinismo e a ironia dos comentários, a verdade é que a reconfiguração das relações interpessoais a que vimos assistindo traz por arrasto um acriticismo atroz. E a esse acritiscismo corresponde uma total incapacidade de dialogar que não seja na base redutora do elogio pateta, do emoji inconsequente, da inacção. Toda a conversa antecedente serviu apenas para nos trazer aqui, a esta palavra: inacção. Podíamos dizer inércia, indolência, mas escolhemos inacção por nos parecer mais conforme com esta deslocação paulatina da rua para a rede. Aqui o ruído — chamam-lhe, eufemisticamente, populismo — sairá sempre vencedor, pois este alimenta-se da absoluta ausência de literatura, a que leva à acção, a que surge de um conflito vigoroso e de um confronto continuado com os paradigmas.
   Tudo isto nos leva a olhar com admiração para um livro que junta a grega Katerina Gógou (n. 1940 – m. 1993) e o inglês Sean Bonney (n. 1969 – m. 2019), dois escritores de gerações diversas, oriundos de países com culturas distintas, a escreverem em línguas diferentes, mas com um propósito muito bem definido de fazer da literatura algo mais do que estribo para montar o cavalo da bajulação. Quando publicou o primeiro livro, em 1978, Gógou tinha um passado como actriz. José Luís Costa, que agora traduziu para português Três cliques à esquerda, especula certeiramente que «se Katerina ainda por cá andasse, duvido que deixasse de gritar o facto de [o destino dos emigrantes] se ter tornado ainda mais terrível em 2020, ano em que se tornou política corriqueira do governo grego capturar migrantes e abandoná-los em alto-mar» (p. 14).
   O que pode a literatura fazer pelo mundo? Hoje, o pouco que pode, talvez seja agitar consciências no sentido de acordá-las do amorfismo em que espontaneamente mergulham. A prova de que as palavras “gritadas” em 1978 não perderam sentido é a leitura que delas fez Sean Bonney, por cá conhecido graças às traduções de Miguel Cardoso para a Douda Correria: Cartas Contra o Firmamento (2016) e A Nossa Morte (2020). Cancro, o livro que agora se junta a Três cliques à esquerda na cuidada edição da Barco Bêbado (Outubro de 2020, com desenhos de Gonçalo Pena), foi originalmente publicado em 2019 com o título Cancer: Poems after Katerina Gogou. A ideia de os reunir num só volume é excelente, mostra como se mantém enérgica a palavra passados mais de 40 anos sobre um livro que tudo levaria a crer datado.
   Eis outro preconceito que convém ultrapassar, a ideia de que uma literatura socialmente comprometida, engajada ou libertária (haverá diferença?), uma literatura empenhada no diagnóstico das doenças sociais, políticas, culturais, religiosas, uma literatura libertadora e, por isso mesmo, transformadora, é preciso ultrapassar, dizia, o preconceito de que uma literatura de acção acaba inevitavelmente ultrapassada pelas circunstâncias. Porventura traumatizados pelas heranças neo-realista e surrealista, os leitores portugueses têm aqui uma boa oportunidade de tratar traumas entendendo que para lá do foguetório idolátrico há sempre nas circunstâncias algo que perdura ao longo dos tempos: o domínio de uns sobre outros. Ora, é contra a humilhação infligida por quem domina que esta literatura persiste.
   Os primeiros versos de Katerina Gógou são claros nesse propósito de nos transportarem para a rua sem necessidade de decorar o cenário: «A nossa vida é a Rua Patissíon. / Detergente ROL que não polui o mar / e o Mitropanos entrou na nossa vida / depois levou-o a Dexamení / como já tinha feito às boazudas. / Nós ali. / Esfomeados viajamos a vida inteira / o mesmo percurso. / Humilhação — solidão — desespero. E vice-versa» (p. 21). Podia ter sido escrito hoje. Dexamení, já agora, era zona de artistas. Gógou ficou pela Rua Patissíon, retratando becos imundos, emigrantes em busca do sonho americano, desempregados, «recrutas com as anónimas cabeças nuas», dirigindo-se ora à mãe, ora à filha, com mensagens de uma desesperança crescente. Pagou um preço alto. As feridas abertas sobressaem em poemas onde a loucura matiza um teatro de crueldade apenas comparável com aquele outrora dirigido por Antonin Artaud (n. 1896 – m. 1948).
   Cancro, o livro de Bonney, é uma espécie de palimpsesto grafado sobre os papiros de Gógou. Onde esta dizia «Os meus amigos são pássaros pretos e estendais / nas vossas mãos» (p. 34), aquele dirá «os meus amigos / são arames estendidos de cidade a cidade» (p. 109). Ambos dão vivas à 204.ª Internacional, dirigindo-se a um futuro onde desespero e resistência se misturam com palavras de ordem carregadas de fúria, Na gramática belicista de Sean Bonney há lugar para trocas de tiros, explosivos, granadas, espancamentos, revólveres, bombas caseiras, pancada, pólvora: «reinventa o tempo. reinventa a violência. depois / ouve, atira-te a esses cabrões como as fúrias» (p. 111). Podemos falar desta poesia como rastilho para a acção ou já de poesia enquanto acção, na certeza de ser uma náusea profunda o que a motiva: «Poesia, pra quê / Vem de “fazer” / Quer dizer “Vai e Faz” / Queria uma resposta / Dos imobilizados» (p. 151). Não obstante, o sonho tem nela um papel determinante.
   Há quem se acanhe perante tais manifestações de raiva, reduzindo o discurso à condição de panfleto, sabendo que pouco lhe resta senão aprender a conviver com o mar de destroços que entra dentro de casa sempre que nos ligamos ao mundo. Distraídos do que já em nós há de ruinoso, degustamos o peru de Natal enquanto na televisão o pivot de telejornal alerta os mais sensíveis para a violência das imagens. Eu prefiro o inconformismo deste “olhar panfletário” à indolência de um “olhar de soslaio”, por no primeiro ainda vislumbrar a hipótese de uma chama que no segundo é só fumo e cinza. Uma referência a Portugal, outra à China, num poema publicado em 1978, pode fazer mais por mim nestes dias do que centenas de livros actuais, carregados de fumo e de cinza, ansiosos de uma eternidade que o mais certo é vir a falhar-lhes:
 
Trabalho remunerado — capital
o imperialismo estádio último do capitalismo
a revolução traída
ah pá camarada a falta que nos fazes…
O tempo criou bicho
ensaios nucleares, frentes populares, bordéis
(até Portugal já perdemos)
superproduções dos católicos e da máfia
tornaram-se multinacionais, não nos deixam amar
camarada.
Bufos sobrem as nossas escadas
cães nos terrenos, sempre que lhes apetecer podem
baixar-nos as calças e foder-nos
coexistência pacífica e socialismo num país
ah pá camarada se soubesses que fardo pesado carregamos…
Os julgamentos de Moscovo, ninguém aguentou
ficaste totalmente só
o pessoal ficou cansado e deram-lhe em cima.
Já sabes, que hei-de dizer?
E depois colaboraram. Já sabes, que hei-de dizer?
Na China, Janeiro de 77, chacinam trabalhadores,
e isso chega cá como se fosse um poema do Mao
(a culpa é das pessoas repetem eles) ah pá camarada
porque não foste mais cuidadoso?
Por cá, o costume. As pessoas escondem-se nas suas tocas.
pêcês há dois, «revolucionários» hermafroditas são aos milhares.
Mas não te preocupes. Vamos conseguir.
É só que, às vezes, canso-me,
nem trabalho tenho, só consigo queixar-me
e é então que mais te sinto a falta
e que te dou nas orelhas por não teres sido mais cuidadoso
e que não tenho vergonha de chorar
nem de escrever poemas
camarada que não traíste
vivemos a barbárie.

Poema de Katerina Gógou.

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