quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

UM POEMA DE SEAN BONNEY

 


Três dias desperto não dou com a porta
já é de manhã e metade das pessoas aqui
ardem de alto a baixo. As restantes de pedra.

                       as suas coxas são as minhas coxas
Ele está atrás de mim. Caminha para mim
a cabeça dele rapada. Não há estrelas

Tomei comprimidos. Ele está nas escadas está. Tomei comprimidos.
Diz que é anarquista. Não percebe nada.
Escolhe coisas. Os homens que eu fodo e
ele é um bófia britânico ele é

           estou há três dias a sonhar
arranha as nossas caras e este lugar também. Fala
de ossos e fogo nos subúrbios.

           eu amo-O sim sim diz-me coisas
coisas que nunca tive

                        um espelho. Pois. Abre-o ao pontapé.
Não. Esta noite não saio. Nunca.
Não fales.        Não.           Não vai ficar tudo bem.



E então fantasmas chegam-se ao pé de nós, pedem-nos dinheiro para a bebida etc. Em troca, cortamos-lhes a água, envenenamos as ondas sonoras dentro das quais eles vivem. Eles esperam por nós em pontos nodais da cidade — os locais para os bloqueios que já discutimos vezes sem conta mas nunca pusemos em prática. Isto é uma nota acerca da circulação da forma-doença, daquilo que Marx tinha a dizer sobre o terceiro dia de sobriedade. É esse o significado do policiamento. Minúsculas sílabas engasgadas, um bloqueio ao que resta das nossas memórias. Sirenes por todo o lado.

"Aqui queimamos as bruxas. Aqui fodemos as putéfias."

Sean Bonney, in Cancro, trad. Miguel Cardoso, Barco Bêbado, Outubro de 2020, pp. 136-137.

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