(...)
«Porque é que você canta?»
Entretanto, dentro de mim, esfrego as mãos com escandaloso contentamento. Ele vai dizer, ele vai dizer!... Com a alma podre de maus desejos e intenções, espero ir um dia cair no meio certo do inferno. Ele vai dizer que canta para comunicar com os outros - vai, vai!...
«Canto por necessidade.»
Pronto, já me lixou! Mas palavra de honra que sou safado. Atiro: «E não canta para comunicar com os outros?» Sim, senhores, estou a ser desleal, estou a pôr armadilhas. Mas é desta maneira que se vê como se move uma pessoa. Se é por si própria ou por corda como os brinquedos, ou por grãos de milho como os pombos. Vou mostrar o meu jogo, uma ova! Assim mesmo manhosamente:
«Não canta para comunicar com os outros?»
É quando aparece o belo golpe de inteligência. Carlos do Carmo diz que sim, mas que isso acontece por ele não ceder a uma comunicação supeficial, ela resulta - a comunicação - precisamente devido a ele cantar por uma necessidade profunda.
«Não se pode enganar o público. Pelo menos por muito tempo. Se a gente está profundamente consigo própria, acaba por estar profundamente com os outros. E então comunica, no sentido mais nobre.»
(...)
Herberto Helder, in em minúsculas - crónicas e reportagens de Herberto Helder em Angola, Porto Editora, Abril de 2018, pp. 60-61.
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