Eram contemporâneas,
falavam a mesma língua, tiveram sortes e destinos diferentes, pisaram as mesas
terras, morreram no mesmo ano. Por cá, o livro de uma não mereceu a mesma atenção
que foi dada ao livro da outra. Razões haverá para que assim seja. Que as
descortine quem tiver interesse. Comecemos pela costa-riquenha Eunice Odio (n.
1919 – m. 1974), filha ilegítima de um pai que apenas conhecerá em idade
adulta. Perdeu a mãe com 20 anos, casando-se pela primeira vez nesse mesmo ano
de 1939. O matrimónio durou 2 anos. Começou a publicar na imprensa sob o
pseudónimo de Catalina Mariel. Em 1947 ganhou o Concurso Centroamericano de
Poesía com o livro Os Elementos Terrestres. Publicado originalmente em 1948,
chega agora à língua portuguesa através de uma cuidada tradução de Luiza Nilo
Nunes.
A edição portuguesa de Os Elementos Terrestres e outros poemas (Anjo Terrível, Setembro de 2020) beneficia ainda de uma elaborada introdução da tradutora e de sete poemas em apêndice, através dos quais se torna mais perceptível a extensão do universo desta poética enigmática. A autora de Territorio del alba (1953) viajou muito por toda a América Latina, adquirindo a certa altura nacionalidade guatemalteca. Problemas pessoais empurram-na para o México, onde trabalhou como crítica de arte, tradutora, publicando, além de poesia, contos e ensaios. Nacionalizou-se mexicana em 1962. Esteve casada com o pintor Rodolfo Zanabria (n. 1927 – m. 2004), que prometeu levá-la para Paris quando para lá foi viver. Promessa nunca cumprida. Ao afastamento e silêncio do pintor correspondeu a ruína da poeta. Conta Luiza Nilo Nunes: «A 23 de Março de 1974, sem filhos ou herdeiros, mas com três livros de poesia publicados que alterariam para sempre o panorama da literatura em língua espanhola, o seu cadáver é descoberto em estado de putrefacção na banheira da casa em que reside» (p. 9).
Apesar de haver
privado com muita gente bem colocada no meio literário do seu tempo, o abandono
e o isolamento, aliados a um temperamento avesso a concessões de carácter e a posições
políticas calculistas, acabaram por remeter o seu trabalho para um injustificável
silêncio. O mais fácil é encaixar a sua poesia no domínio de uma estética
mística, altamente devedora, no livro de estreia, das imagens e dos símbolos herdados
dos textos bíblicos. As epígrafes assim o reforçam, tal como a estrutura de um
livro que começa enquanto invocação, desenvolve-se à maneira de uma oração e
termina com uma convocação para a incessável busca e procura do sublime. Esta
incessibilidade, típica daquele para quem a fé se manifesta mais pela ausência
do que pela presença, é uma das marcas fortes da poesia de Eunice Odio. A metafísica
dos seus poemas acarreta o estigma de uma necessidade física que se alimenta da
sua própria insatisfação. A busca da poeta é a do ideal inalcançável, o qual se
reflecte tanto no plano metafísico como no plano social. Vejam-se, a título de
exemplo, os poemas Nuvem e paraíso, com a Guerra Civil Espanhola em pano de
fundo, ou Essas Mulheres Perdidas, dedicado ao cubano Nicoás Guillén:
ESSAS MULHERES PERDIDAS
A Nicolás Guillén, enorme poeta e grande amigo.
Essa mulher que vimos
colada à luz,
a apropriar-se dos faróis,
de olhos caídos nos passeios,
Senhora rígida e solitária,
E há de morrer
um dia destes.
Disse-me em segredo
aquele senhor que
se alimenta de luminosos
e esfumados diminutivos
pelas salas da fluoroscopia.
Já a tinha visto uma vez;
a esquivar-se
entre vozes e corpos
masculinos,
Senhora rígida e solitária na penumbra,
limpa de claras presenças,
perdendo-se nos braços fundos
dos prostíbulos,
sedutora de matizes duvidosas,
enlutado de trevos
o corpo um inteiro gomo
de ângulos noturnos,
marchando atrás das vozes violentas e ásperas
entre ervas doutrinárias
e displicentes caçadas,
e agora há de morrer,
em declínio,
tenaz na sua morte,
aquático o passo
interrompido e pesado,
Senhora rígida e solitária.
Limpa de claras presenças.
O Amado invocado nos oito poemas longos de Os
Elementos Terrestres mostra-se mais pela ausência do que pela presença: «Ah, /
se ao menos eu um dia te encontrasse / tranquilamente ao redor da minha morte,
/ despertando com teu amor os meus ouvidos / onde as águas desaguam / sem
retorno…» (p. 41). É a ausência que leva a uma experiência limite do desejo e da
língua, a qual se reconfigura em metáforas indecifráveis, herméticas, que tentam
comunicar com o incomunicável, pronunciando o impronunciável: «Abre os ouvidos e
ouve esta canção / que é como a semente das estações» (p. 85). Estes poemas estão,
pois, de acordo com a ideia da poesia enquanto dilatação dos códigos linguísticos
que determinam a comunicação entre os homens. O seu aparente hermetismo resulta
de uma tentativa de contacto com o indizível. A comunicação, neste caso,
cede a outras forças, não perdendo porém o elo com a realidade terrestre.
Diferente no estilo, a mexicana Rosario Castellanos (n. 1925 – m. 1974) partilha com Eunice Odio uma experiência problemática da religiosidade. Formada em Filosofia, transportou para a sua poesia muitas das questões fundadoras da reflexão filosófica. Fá-lo, no entanto, com espontaneidade e vigor impressionantes, a ponto de por vezes os seus poemas se assemelharem a manifestos. Nascida no seio de uma família abastada, cresceu num ambiente rural marcado pela exploração dos indígenas. Alguns dos poemas nesta antologia seleccionada e traduzida por Jorge Melícias, tais como Agonia fora do muro ou Memorial de Tlatelolco, denotam uma consciência social bastante apurada nesta matéria. Na biografia reproduzida nas badanas refere-se que depois de ter ficado órfã, aos 22 anos, «doou aos índios mexicanos as terras que herdara». José Rui Teixeira, autor do prefácio, sublinha igualmente a sua revolta contra a condição feminina no seu tempo.
Casou em 1958,
sendo mãe passados 4 anos, «depois de dolorosas perdas — abortos e a morte de uma
filha recém-nascida, a quem dedicará Lívida luz (1960)» (p. 5). Divorciou-se em
1971, antes de partir para Telavive como embaixadora do México em Israel. Aí faleceu, na casa onde residia, presume-se que electrocutada na
sequência de um acidente doméstico. Há quem tenha colocado a hipótese de
suicídio, mas não há evidências que permitam confirmar a tese. De referir
também a docência na National Autonomous University of Mexico, onde se formou,
a associação ao National Indigenous Institute, para o qual escrevia peças que
eram representadas em regiões remotas para promover a literacia junto dos
índios, a colaboração com o jornal Excélsior, a infidelidade de Ricardo Guerra
Tejada, filósofo com quem casou e de quem teve um filho, as depressões, uma
intensa dedicação às chamadas causas feministas. O mais correcto seria falar de
direitos das mulheres. Vejam-se poemas excepcionais tais como Kinsey Report ou mesmo
o Auto-retrato onde começa por afirmar, com refinado sarcasmo: «Sou uma
senhora: tratamento / difícil de obter, no meu caso, e mais útil / para
rivalizar com os demais que um título / adicionado ao meu nome por qualquer
academia» (p. 169).
Na obra de
Rosario Castellanos encontramos poemas longos, sequências extensas, e pequenos
poemas incisivos como gumes: «Não comas nunca nada / que não sejas capaz de
digerir, / que não sejas capaz de vomitar» (p. 199). O tom elegíaco que atravessa
esta antologia, confirmado inclusive pelos títulos de alguns poemas — Elegias do fantasma amado, Falsa
elegia, Elegia (1969), Elegia (1972) —, não deve distrair-nos da ironia subtil com
que alguns temas são abordados. Não obstante, o discurso espantosamente
desabrido em matérias de carácter interventivo contrasta com a gravidade, até
alguma solenidade, quando o território de reflexão é o do sagrado e da relação
problemática do homem com Deus. Em Anotações para uma profissão de fé, extenso
poema onde se desenha uma cosmogonia pessoal, essa problematização evidencia-se
pelo contraste da gravidade dos assuntos com o tratamento irónico que lhes é
dado. À pergunta sobre o que fazemos aqui, os dois versos finais respondem com
extrema clareza: «neste continente que agoniza / bem podemos plantar uma esperança»
(p. 31). Abordagem semelhante se reconhece em peças fundamentais como Muro de
lamentações, Lamento de Dido, Diálogo do Sábio e do Seu Discípulo, Monólogo da estrangeira.
O lamento que acompanha a
retórica do poema não o encerra, abrindo-se com palavras penetrantes, agudas,
por detrás das quais se esconde e desponta a consciência de um corpo efémero,
de uma vida passageira, de uma História estigmatizada pela ruína. A solidão, por
vezes a loucura, são nomes que matizam um sentimento de desterro e, tal como
sucedia em Eunice Odio, de desencontro com o sagrado: «Procuro entre as
coisas a Tua pegada e não a encontro» (p. 49). A este desencontro não
corresponde uma negação, mas sim uma forma de deísmo que transforma o encontro
com Deus num encontro consigo mesmo. Se há um movimento ascensional em alguns
poemas de Rosario Castellanos, esse mesmo movimento sofre de um enraizamento na
terra que aumenta a dúvida e adensa o mistério da vida. Em certo sentido,
podemos dizer que esta é uma poesia existencial. Mas é importante que tenhamos
presente quanto dela se perde ao ser rotulada:
O OUTRO
Porquê pronunciar nomes de deuses, astros,
espumas de um oceano invisível,
pólenes dos jardins mais remotos?
Se nos dói a vida, se cada dia chega
rasgando as entranhas, se cada noite cai
convulsa, assassinada.
Se nos dói a dor de alguém, de um homem
que não conhecemos, mas que está
sempre presente e é a vítima
e o inimigo e o amor e tudo
o que nos falta para sermos inteiros.
Nunca digas que é tua a escuridão,
não bebas de um trago a alegria.
Olha à tua volta: há outro, há sempre outro.
O que ele respira é o que a ti te asfixia,
o que come é a tua fome.
Morre com a metade mais pura da tua morte.
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