sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

DEPOIS DO MEIO DIA

 


 

quando o toque do sino toca,
depois do sino tocar,
o toque toca o sino
 
que toca o toque
do som do sol em véu
e vertigem,
que toca a nuvem
 
os olhos, as mãos,
o corpo unge um papel velho
 
e todas as manhãs a casa vaza
sem que a areia se emudeça
 
as ruas insinuam uma ausência repetida
num mapa desenhado a luz fria,
enquanto as copas das árvores
se despem a rasgar o estalo
das folhas húmidas
até ao tempo no chão
como uma crosta solta
ao redor do vento cínico
 
laje sobre laje
loja sobre loja
nos mesmos vultos
deformado o rosto
da sombra de um céu mentiroso,
lavrando epitáfios
nos mesmos jornais atirados
ao lixo,
curiosas figuras
soltas em fotografias
 
do berço ao heroísmo
sobra o nome das ruas
onde os prédios sobem
a passo de neve:
aqui uma viga,
um ano mais alto,
logo a janela frígida,
a sala e a cama
recortadas nos telhados
da reverberação urbana
 
porque logo é tarde,
acima de tudo
porque logo é sempre já tarde
como o infixo absoluto
tivesse já chegado ao meio dia —
 
já caiu a hora da luz completa,
do silêncio sem notícia,
a hora sem casca
do fruto acabado,
orla azul de gelo
a atravessar os copos na cozinha
 
quando o toque do sino toca,
depois do sino tocar,
o toque toca o sino
 
que toca o toque
do som do sol em véu
e vertigem,
que toca a nuvem;
 
chove —
o sino cai até ao chão
a hora morre na laje
 
e todas as manhãs a casa vaza
sem que a areia se emudeça, …
 
quando o tempo nasce
embalado nas sombras,
suspenso licenciosamente no sobrecéu
do mito
 
Guilherme Vilhena Martins (n. 1996), in Háptica (Douda Correria, Junho de 2020). Formado em Filosofia, este é o seu primeiro livro. O título remete para uma forma de percepção sensorial, muito em voga na actualidade por via do desenvolvimento de tecnologias caracterizadas pelo uso de interfaces tácteis. Nestes poemas o toque desdobra-se, podendo remeter para a audição (toque de som) ou para a visão (tocar é ver, como no braille): «o olho háptico, / longo, / longe, / na rota irrecuperável / da paisagem em falta». A sinestesia é uma das dimensões da linguagem poética que, desde há muito, se alimenta de combinações entre visão e tacto. Ver é ouvir, tocar é ver, a poesia expande as convenções comunicacionais, entra em ruptura com as mesmas fundando uma linguagem essencialmente expressiva, pautada por cacofonias, zeugmas, metonímias, jogos semânticos e fonéticos diversos na demanda de uma língua total. O aspecto mais curioso destes poemas é, no entanto, o modo como escapam a um discurso contaminado por emoções e sentimentos. A expressão cinge-se, neste caso, a um dizer as coisas sem sobre elas colocar a subjectividade afectiva do sujeito. São poemas escritos e reescritos a partir da enunciação dos elementos que compõem um corpo ou uma paisagem, sendo toda a atenção direccionada para a forma como esses elementos podem articular-se entre si ao serem deslocados para o texto: «a imagem da árvore / só existe porque a árvore existe / sem se ver». O problema que levantam é, pois, o da debilidade da percepção e, por consequência, de uma poesia que pretenda ser-lhe fiel sem pôr em causa a parcialidade das impressões enquanto via de acesso ao real: «tudo isto tentativa: / tenho a sensação que se me visse de costas / não me reconheceria».

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