O que é isto? Já caem baratas do tecto? Se bem me lembro,
quem o perguntou foi um jovem Luís Miguel Cintra no primeiro filme do João
César Monteiro: «Quem espera por sapatos de defunto morre descalço» (1971).
Grande título. A cena passa-se num café, como muitas das páginas nos Cadernos
de Bernfried Järvi (Livraria Snob, Dexembro de 2019): «Os cafés transformaram-se,
um após outro, em lares para solitários e depois em mausoléus, deixando à mostra
a superfície branca e triste das mesas de mármore. As lâmpadas morrem aos
poucos no tecto. Os espelhos trocam entre si olhares carrancudos, desconfiados.
O Aviz está tão calmo a esta hora que podemos ouvir os pensamentos uns dos
outros a voarem à nossa volta, com as suas asitas frementes, cruzando o ar com
a rapidez de relâmpagos» (p. 137). São frases anteriores à pandemia, os cafés
estavam abertos. Podemos supor que o país de João César Monteiro (n. 1939 – m.
2003) em 1971 era outro que não o de Rui Manuel Amaral (n. 1973) nestas
primeiras décadas do século XXI, e porventura assim será. O que se repete é a
porra das baratas a caírem do tecto.
O mundo de Bernfried Järvi é tão diferente do nosso que
chega a parecer igual. Aachen, onde supostamente a (in)acção decorre, pode
descrever-se em duas frases: «Espécie de gaiola para moscas» (p. 18). Afinal
basta uma. Há uma localidade com o mesmo nome na Alemanha, mas suponho que não
tenha os mesmos cafés. A confusão começa aqui e é propositada. Não vale a pena
tentar encontrar conexões entre as páginas destes cadernos e a realidade, pois
o mundo que neles se fixa é fantasmagórico como o reflexo de um rosto num
espelho. Imaginemos, porém, que em vez de um simulacro de rosto o espelho devolvia
estados de alma, sentimentos, sensações, e que tudo o que nele se reflectia era
plano e transparente como as águas plácidas de um lago, movendo-se apenas
ligeiramente à passagem de uma brisa: «Um espelho observa-me com os seus olhos
deformados» (p. 124). Tenham medo, viver é uma pena que se cumpre, o tédio o
seu maior castigo.
A única excitação que a espaços vai interrompendo a
modorra destes dias surge na forma de sonhos, os quais vão sendo descritos por Järvi
sem motivo para análises profundas. Não se julgue que nada acontece em Aachen,
a dada altura até uma bela mulher baralha os dedáleos caminhos da ilusão. O
espanto é o tédio que se prolonga na eterna expectativa do inesperado, a acção
está em aguardar que algo aconteça. «Nada de relevante a assinalar», conclui-se a
certa altura. E no entanto os cadernos vão sendo preenchidos com frases,
hesitações, suspensões, definições, súbitas alterações de sentido, num jogo que
consiste em fazer do enfadonho registo da rotina uma grande aventura do
espírito. A meteorologia lá está, percorrendo as páginas ao longo do livro, para
nos recordar que por cima dos grandes trânsitos da existência humana o céu
mantém-se inalterável. Mais nuvem, menos nuvem, lá está ele a olhar para nós, a
rir-se de nós e do tempo que desperdiçamos a pensar na morte da bezerra. Até os
«pássaros bocejam».
Então uma projecção, depois uma alucinação (será?),
a monotonia dos dicionários pautando o ritmo dos dias, a grande ciência do
marasmo. Bernfried Järvi tem amigos, claro, que encontra no Ceuta, no Aviz, no
Piolho ou noutro café qualquer, pega em vários livros e esforça-se por lê-los,
faz um minuto de silêncio em memória de si mesmo. Chega a elaborar questões que
dariam para escrever tratados: «De que ovo saiu esta angústia?» (p. 42). Só que
não lhes responde, a nulidade é nele a força que tudo suspende. A escrita é uma
espécie de excepção momentânea, inscrita no movimento rotineiro dos ponteiros
que marcam a passagem das horas num relógio.
Rui Manuel Amaral escreve de acordo com uma tradição que
vem de Laurence Sterne, o grande sabotador das convenções literárias, mas se
desenvolveu com nuances humorísticas e absurdas em autores tais como Gogol,
Pirandello, Kafka, o talvez menos citado Ryūnosuke Akutagawa (no estilo, nas
técnicas de subversão narrativa), e, sobretudo, Daniil Kharms e Samuel Beckett.
Alguns destes nomes ressoam nas páginas dos Cadernos de Bernfried Järvi, livro
de um herói que anda no seu próprio encalço, repleto de sonhos cujo nonsense se
desfaz pelo que de nós reconhecemos nas palavras dos outros: «—
Às vezes ignoro se vivo ou se a minha vida não passa de uma história que alguém
está a contar a outra pessoa qualquer. Palavra de honra, Bernfried, que pela
forma como tudo se passa, chego a pensar nisso. Às vezes tenho a impressão de
que atrás destas paredes acaba o mundo e que do outro lado começa um outro,
erguido por mãos invisíveis, inteiramente desconhecido. Que somos simples
títeres tremulando nos fios do destino. Que viemos da página em branco e para
lá iremos voltar» (p. 148). Que mais posso dizer? Assim que as livrarias
abrirem, invadam-nas e roubem todos os exemplares deste livro. Se o encontrarem. Sentem-se num café a
lê-lo. Se ainda houver cafés.
2 comentários:
E bem bom, esse book.
Chegou onde chegou, as livrarias onde chegou, sem peneiras.
Etc.
Nem sei por que me dou ao trabalho de fazer tão inútil comentário.
Talvez porque me apetece.
Deixo também aqui um like.
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