Pouco depois um cancro levou-o. Criou até ao fim. Se recordo um dos seus últimos trabalhos não é por desconhecer os anteriores, que perscruto como criança em busca de novas sensações. É para sublinhar esse legado que foi a vida ela mesma. Digamos que Zappa e a música confundem-se. Há dias cruzei-me com ele numa fotografia partilhada nas redes sociais, altíssimo, aconchegando uma idosa que lhe ficava pelo ombro. Olhei a imagem como se estivesse a ouvir música. Depois fui buscar Hot Rats, salvo erro de 1969, e reparei que a malha de baixo no início de Little Umbrellas é igual à de um tema dos belgas dEUS. Devem ter usado um sampler. Não fui verificar, não me interessa, estou farto de plágios. Prefiro concentrar-me no humor único de Zappa, o grande sátiro do american dream que condena milhões de seres humanos a uma vida miserável de subserviência e de ressentimento. É a dúvida mais profunda que carrego desde que me lembro de haver pensado: com que propósito tanta gente sacrifica a própria vida, arrastando-se num regime continuado de autoflagelação, ódios mesquinhos, rancores, inveja e, sobretudo, querendo impor aos demais pontos de vista e perspectivas do mundo como se os demais não tivessem cabeça para pensar. Julgar-se-ão imortais? Acreditarão na eternidade? Olho as vaquinhas a mugir no campo enquanto ruminam e vejo-as logo, pobrezinhas, desfeitas em costeletas. Julgarão essas pessoas que o nosso destino é diferente do das vacas? Na ética dispendiosa proposta por Onfray a música é arte do tempo, oferece a fusão com o éter. Entre o princípio e o fim duma peça a gente vê a vida inteira a desvanecer. Esta aprendizagem é fundamental, para que não nos transformemos em peixes-bois. Isso queríamos nós. Amanhã vou roubar um peixe-boi à Marina.
2 comentários:
Zappa will never be zapped. Quanto ao peixe-boi, embora goste menos dele desde que lhe preguei os cornos, tenho os meus zelos de proprietária. Terás de contornar um terreno minado de dentaduras postiças, uma sentinela de bonecos de ventriloquista e um drone de cartolina com inclinações kamikaze. Tenho também à mão, para emergências, uma caçadeira e um avental como o da velhota em The Night of the Hunter, leaning, leaning, safe and secure from all alarms. Cá te espero.
'Tá quase.
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