— Como tens passado ultimamente? — perguntou.
— Estou sempre na mesma, um feixe de nervos.
— Estou sempre na mesma, um feixe de nervos.
— As drogas não te vão ajudar, como sabes. Não gostavas de te tornar crente?
— Quem me dera consegui-lo...
— Não é difícil. A única coisa que tens de fazer é acreditar em Deus, acreditar em Cristo como filho de Deus e acreditar nos milagres que Cristo levou a cabo...
— Consigo acreditar no Diabo.
— Então, porque não em Deus? Se acreditas na sombra, também tens de acreditar na luz, não achas?
— A escuridão sem luz existe, como sabe.
— Escuridão sem luz?
Apenas consegui ficar em silêncio. Tal como eu, também ele caminhava pela escuridão, acreditando, porém, que, se a escuridão existe, também a luz deve existir. A minha lógica e a dele só divergiam neste ponto. Contudo, para mim, isso seria certamente sempre um abismo intransponível.
— Mas a luz tem de existir. Os milagres provam-no. Ainda hoje acontecem milagres de vez em quando.
— Sim, os milagres do Diabo talvez...
— O que significa essa conversa sobre o Diabo?
Senti-me tentado a contar-lhe aquilo que tinha experimentado no último ano mais ou menos, mas tive medo de que ele o contasse à minha mulher e aos meus filhos e que eu acabasse como a minha mãe, num sanatório mental.
— O que é que tem ali? — perguntei.
Este velho robusto virou-se para olhar para a estante envelhecida com uma expressão jocosa como a de Pã.
— As obras completas de Dostoievski. Alguma vez leste Crime e Castigo?
Ryūnosuke Akutagawa, in Rashōmon e Outras Histórias,
trad. Virgílio Tenreiro Viseu, 2.ª edição, Junho de 2019, pp. 326-327.
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