Por vezes pergunto-me que dissimulado cúmulo de imagens os
outros conservarão de mim mesmo. Muitos — adivinho-o porque alguns já tiveram a
coragem de me o atirar à cara —recordarão a néscia vaidade dissipada no
brilho dos meus olhos; outros, a ameaça indisfarçável de desprezo com que a
imbecilidade — especialmente a dos demais — subitamente embrutece as feições do
meu rosto; e suspeito que uns poucos aquele poço de temor, a careta de animal
acossado e indefeso a que por vezes me reduzem a pena ou a ternura…
Também eu guardo
deles —
desses pálidos fantasmas que por vezes se cruzaram e que ainda se cruzam
com a minha vida — o afã, a dor, a vergonha ou a coragem que, certo dia, me
inspiraram os seus semblantes. Fecho os olhos e logo os vejo. São uma sucessão
de flashes que, capturados num ricto, emergem na minha mente. Assim os olhos transviados
de Borges numa remota tarde de Abril, o sorriso moribundo da minha mãe ou o
último olhar no rosto sem amor de Alina Reyes. São uma projecção de expressões fragmentadas
e eu, como o esquecimento, o seu fiel coleccionador…
De Nicolás
Arnedo —
sem dúvida alguma o mais excepcional de quantos poetas formam esta funesta antologia de suicidas —, conservo vivamente na
memória a imagem da sua cara estupefacta, quando no El Paredón, ao entardecer
de uma tarde de Junho, alguém que não eu o abateu com esta frase de Cesare
Pavese: “A coisa mais secretamente temida acaba sempre por acontecer”.
Nicolás Arnedo
Marañón, nascido em Segovia a 6 de Agosto de 1950, era um homem de carácter
sumamente reservado e depressivo, que viveu permanentemente à custa da dor.
Sujeitado à severidade de uma mente hipocondríaca, suportou com inaudita
apreensão todos os sintomas de quantas e múltiplas enfermidades tinha
conhecimento, sem que alguma delas alguma vez lhe tenha sido diagnosticada.
Consciente de que o mal — o mal obscuro* —se encontrava no seu cérebro,
buscou salvação no divã de um prestigiado psiquiatra, o qual lhe recomendou que
exorcismasse temores escrevendo. Persuadido — talvez como Molière, outro
doente imaginário — de que apenas o exercício da literatura aliviaria seus
tormentos, entregou-se de corpo e alma à vasta criação desse inteligente
labirinto de aflições — solidificado com poemas esplêndidos, breves, ainda que
densos, contos, aforismos medíocres e citações desgarradas com aspiração a
feitiços — a
que deu o nome de Terapia, obra publicada meses antes da sua morte e que, desafortunadamente,
nada lhe curou: enforcou-se a 20 de Janeiro de 1991, não deixando como aviso
de tal decisão mais do que umas frases sublinhadas na última página do livro O Ofício
de Viver, de Cesare Pavese:
«Espantas-te de que os outros passem a teu lado e não
saibam, quando tu próprio passas ao lado de tanta gente sem saber: Não te
interessa qual o pesar de cada um, o seu cancro secreto?
A coisa mais secretamente temida acaba sempre por
acontecer.
Tudo isto é asqueroso.
Palavras, não. Um gesto. Não escreverei mais.»
A autópsia
realizada ao cadáver de Nicolás Arnedo revelou a presença de um tumor
incipiente no seu cérebro.
* O Mal Obscuro, de Giuseppe Berto. Livro de cabeceira de
Nicolás Arnedo.
AFORISMOS
6
Propus-me descobrir aquele ser infame
que residia na minha ambição e na minha ganância.
Agora sou eu quem ri, cheio de tristeza.
11
Quem escava como um louco nas suas profundezas
corre o risco de arrancar do coalho
a realidade ao sonho.
18
Pouco a pouco a intenção de melhorar o mundo
converteu-nos em usurários do fracasso,
em mesquinhos comerciantes da infelicidade.
22
Onde a luz projecta a sua estranha
intermitência de encontros imprevistos,
a obscuridade acolhe um açougue
de corpos submetidos ao amor.
66
Disse o ilusionista:
“É preferível a ideia de adorar um deus indigno,
a pensar que o homem é obra de um azar incompreensível.
Nota: Nicolás Arnedo é uma personagem de ficção criada
por Eliseo González, in Galería de Suicidas, Huerga y Fierro editores,
Maio de 2003, pp. 29-40. Versão de HMBF. Para as citações de Cesare Pavese usei
a tradução de Alfredo Amorim, in O Ofício de Viver, Relógio D’Água, 2004.
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