terça-feira, 2 de março de 2021

AFORISMOS DE NICOLÁS ARNEDO

 


 

Por vezes pergunto-me que dissimulado cúmulo de imagens os outros conservarão de mim mesmo. Muitos — adivinho-o porque alguns já tiveram a coragem de me o atirar à cara —recordarão a néscia vaidade dissipada no brilho dos meus olhos; outros, a ameaça indisfarçável de desprezo com que a imbecilidade — especialmente a dos demais — subitamente embrutece as feições do meu rosto; e suspeito que uns poucos aquele poço de temor, a careta de animal acossado e indefeso a que por vezes me reduzem a pena ou a ternura…
   Também eu guardo deles — desses pálidos fantasmas que por vezes se cruzaram e que ainda se cruzam com a minha vida — o afã, a dor, a vergonha ou a coragem que, certo dia, me inspiraram os seus semblantes. Fecho os olhos e logo os vejo. São uma sucessão de flashes que, capturados num ricto, emergem na minha mente. Assim os olhos transviados de Borges numa remota tarde de Abril, o sorriso moribundo da minha mãe ou o último olhar no rosto sem amor de Alina Reyes. São uma projecção de expressões fragmentadas e eu, como o esquecimento, o seu fiel coleccionador…
   De Nicolás Arnedo — sem dúvida alguma o mais excepcional de quantos poetas formam esta funesta antologia de suicidas —, conservo vivamente na memória a imagem da sua cara estupefacta, quando no El Paredón, ao entardecer de uma tarde de Junho, alguém que não eu o abateu com esta frase de Cesare Pavese: “A coisa mais secretamente temida acaba sempre por acontecer”.
   Nicolás Arnedo Marañón, nascido em Segovia a 6 de Agosto de 1950, era um homem de carácter sumamente reservado e depressivo, que viveu permanentemente à custa da dor. Sujeitado à severidade de uma mente hipocondríaca, suportou com inaudita apreensão todos os sintomas de quantas e múltiplas enfermidades tinha conhecimento, sem que alguma delas alguma vez lhe tenha sido diagnosticada. Consciente de que o mal — o mal obscuro* —se encontrava no seu cérebro, buscou salvação no divã de um prestigiado psiquiatra, o qual lhe recomendou que exorcismasse temores escrevendo. Persuadido — talvez como Molière, outro doente imaginário — de que apenas o exercício da literatura aliviaria seus tormentos, entregou-se de corpo e alma à vasta criação desse inteligente labirinto de aflições — solidificado com poemas esplêndidos, breves, ainda que densos, contos, aforismos medíocres e citações desgarradas com aspiração a feitiços — a que deu o nome de Terapia, obra publicada meses antes da sua morte e que, desafortunadamente, nada lhe curou: enforcou-se a 20 de Janeiro de 1991, não deixando como aviso de tal decisão mais do que umas frases sublinhadas na última página do livro O Ofício de Viver, de Cesare Pavese:
 
   «Espantas-te de que os outros passem a teu lado e não saibam, quando tu próprio passas ao lado de tanta gente sem saber: Não te interessa qual o pesar de cada um, o seu cancro secreto?
   A coisa mais secretamente temida acaba sempre por acontecer.
   Tudo isto é asqueroso.
   Palavras, não. Um gesto. Não escreverei mais.»
 
   A autópsia realizada ao cadáver de Nicolás Arnedo revelou a presença de um tumor incipiente no seu cérebro.
 
* O Mal Obscuro, de Giuseppe Berto. Livro de cabeceira de Nicolás Arnedo.
 
 
AFORISMOS
 
6
Propus-me descobrir aquele ser infame
que residia na minha ambição e na minha ganância.
Agora sou eu quem ri, cheio de tristeza.
 
11
Quem escava como um louco nas suas profundezas
corre o risco de arrancar do coalho
a realidade ao sonho.
 
18
Pouco a pouco a intenção de melhorar o mundo
converteu-nos em usurários do fracasso,
em mesquinhos comerciantes da infelicidade.
 
22
Onde a luz projecta a sua estranha
intermitência de encontros imprevistos,
a obscuridade acolhe um açougue
de corpos submetidos ao amor.
 
66
Disse o ilusionista:
“É preferível a ideia de adorar um deus indigno,
a pensar que o homem é obra de um azar incompreensível.
 
 
Nota: Nicolás Arnedo é uma personagem de ficção criada por Eliseo González, in Galería de Suicidas, Huerga y Fierro editores, Maio de 2003, pp. 29-40. Versão de HMBF. Para as citações de Cesare Pavese usei a tradução de Alfredo Amorim, in O Ofício de Viver, Relógio D’Água, 2004.

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