segunda-feira, 1 de março de 2021

NORTE, FALCA E LÉGUA

 

Apontamento preliminar: o meu amigo e editor m. parissy tem livro novo, publicado pelo meu amigo e editor Carlos Alberto Machado. Eu li o livro. E escrevo sobre ele no meu weblog, sem qualquer intenção de chatear os chatos. Venham daí esses urros de indignação. Só não rasguem as vestes, que a roupa está cara.

 
m. parissy (n. 1969) é o pseudónimo literário do jornalista Mário Galego. Começou a publicar, em pequenas edições artesanais e edições de autor, no final da década de 1980. Já na década seguinte criou e dinamizou com outros comparsas da Nazaré, onde nasceu, as extintas publicações non nova sed nove, folhas soltas, distribuídas à margem do que possa ser considerado um qualquer circuito comercial de poesia portuguesa, que estiveram na origem do projecto editorial com o nome de volta d’mar. Além disto, publicou livros pela saudosa Black Sun Editores, de Fernando Guerreiro, e pela Edições Mortas, de A. Dasilva O.. Um percurso discretíssimo, pois, num poeta cuja relação com a poesia se desenvolve na base de uma motivação apaixonada sem compromissos filiais.  norte, falca e légua (Companhia das Ilhas, Janeiro de 2021) é o seu livro mais recente.
   Sem se afastar minimamente daquilo a que nos habituou em livros anteriores, m. parissy mapeia-nos agora os lugares da adolescência convocando-nos para uma caminhada ao interior de uma paisagem que conhece bem. De certo modo, podemos dizer que se trata de uma poesia paisagista. As praias elencadas no título são a origem de retratos matizados por piteiras, cardos-marítimos, camarinheiras, com seus trilhos secretos por entre enseadas, dunas e arribas. No entanto, a caminhada não se circunscreve ao plano contemplativo de uma paisagem idílica: «Ao fim de meia hora de sol, a praia revelava como / não é apenas um paraíso» (p. 16). Inscrita hoje nos roteiros turísticos, por via de ondas gigantescas surfadas e exploradas ad nauseam por quem desconhece o significado daquele mar para quem nele fez vida e assistiu diariamente à morte, a Praia do Norte deste livro é mais do que um ponto de observação de excitantes desportos radicais. Ela é a porta de entrada para um mundo de acasos ao encontro do perigo e das ameaças com que a natureza desde sempre desafia quem nela se aventure.
   A paisagem adquire, neste sentido, dois planos: um exterior, outro interior. Logo ao primeiro poema, o “arco mágico” que começa a desenhar-se no peito é o de uma liberdade inspirada pela exploração do lugar à revelia de cautelas e de cuidados. Da mesma forma, encontramos ao longo do livro um contraste entre esse outrora da adolescência e o agora da idade adulta. O que se perdeu não é somente do domínio da transformação paisagística exterior, mas está igualmente associado a uma paisagem interior emotiva e sentimental onde se enraízam os valores perduráveis. Entre eles, o da recusa: «Areal sem marcas. Os caminhantes aprendem a / recusa. Valor único» (p. 11). É curioso notar a relevância da memória nestes poemas visitados pelos “fantasmas do passado”, percorrendo um percurso (externo) que permite refazer o itinerário (interno) da personalidade do sujeito. Esse areal que se revela “lugar sem onde” expressão em si mesmo programática é o terreno árido, temerário, onde foram lançadas as sementes de um ser em construção, ciente dos abismos que se abrem pela frente a quem de desvie da rota traçada.
   A poesia de m. parissy mantém-se fiel a uma linguagem que não se socorre de artifícios altamente vulgarizados, como sejam a retórica sedutora do discurso publicitário, os trocadilhos, uma ironia dócil rebaixada ao efeito cómico do poema-piada. Também evita o discurso narrativo, de tipo confessional ou meramente descritivo, afastando-se do quotidiano sem de todo o negar, preferindo antes abordá-lo com distanciamento. Talvez por isso estes poemas possam parecer algo áridos, em termos rítmicos e musicais, a quem se fique por uma leitura superficial dos mesmos, passando ao lado do que no seu interior se descobre hábil como a teia tecida pela aranha que os visita amiúde: «Entrar / dentro das flores e lamber-lhes as labaredas» (p. 33). Fiel a um olhar metafórico sobre a realidade, é através de simbólicas camadas de percepção que m. parissy constrói um universo poético onde memória, realidade e sonho coabitam sem que um exerça qualquer preponderância sobre os restantes:
 
[Tio Fininho]
 
Uma silhueta recorta a linha de praia. Cesto
debaixo de um dos braços, de onde sai uma linha
que se prolonga para dentro do mar.
Não há vento. O boné não voa. O homem sim.
 
Já vem, já vem p’xinho, adivinha o homem de mãos
recortadas.
 
Porque é que a ambição não conta de cada vez que
dá um passo enterrando as botas? Não leva
excessos, aliás, pouca glória conhecerá. Mas conta
uma alegria como se isso fosse um destino
comum.
 
Quando a pedra que estica a linha está de frente,
sabe-se que tem de se esperar. Segura-se como se
fora um chão, uma língua própria, uma fronteira.
Ele próprio um cabo de amarração.
 
Há um tempo de varrer destroços perante o horizonte.
Ali naquele espelho, soltam-se da moldura.
 
E só regressa com o peso de alguns robalos. Assim
conquistando, de novo, o lugar em casa.
 
m. parissy, in norte, falca e légua, Companhia das Ilhas, Janeiro de , pp. 14-15.

27 comentários:

Jorge Melícias disse...

Que ternura! https://www.youtube.com/watch?v=nPEcuILZFaE

hmbf disse...

Tadinho. Qué miminho, qué? Tome lá bebé feio do seu nininho: http://universosdesfeitos-insonia.blogspot.com/2017/04/hybris.html

Jorge Melícias disse...

Deixa lá o reco-reco que eu prefiro estática por afago. Do teu superlativo esforço ressaltou apenas duas coisas: a primeira é que fazes bem em te dedicares às cordas para as quais tens dedos. A segunda é que "mendacidade" e "mendicidade" são dois tempos do verbo tresler.

Jorge Melícias disse...

E, porque gostas tanto dos sonetos da tribo, toma lá este um bocadinho menos todos à volta da fogueira e vai de Kumbaya. Há, ai pelo meio, um "mendicidade". Agora não o confundas com "mendacidade", pf.


Pranto pelo labéu de Tirésias


Eu, que entre o capricho e a veleidade
dos deuses andei sempre ao arrasto;
que sequer fui mau, que a crueldade
exige mais que este mero ser pasto;

eu, que nem às costas da mendicidade
logrei à minha sorte ajoujar lastro;
eu, que perante a própria tragicidade
fingi o pior dos crimes, ser casto,

que sabeis vós que eu não saiba que mereço?
Eu, que a toda a honra e coragem antepus
a chã docilidade com que obedeço.

Ah, não me iludo! A cegueira que me conduz,
aquela com que em desdouro me meço,
fui eu que ma impus.

José D. disse...

(...) Eu li o livro. E escrevo sobre ele (...) sem qualquer intenção de chatear os chatos. Venham daí esses urros de indignação.(...)

Mas porquê este aviso?

Oh deuses!

hmbf disse...

José D., por causa dos chatos. Não há meio de desampararem a loja.

manuel a. domingos disse...

Lá vem o ortodoxo de serviço
pregar a sua bafienta cartilha
Tem a mania que é insubmisso
líder de inexistente matilha

Debita poemas frente ao espelho
pensa que é o maior da sua rua
Na realidade não vale um chavelho
se lho dizem é certo que amua

Já ameaçou de porrada aquele este
o outro mais a geração futura
O seu feitio é conhecido e agreste
todos acusa de subliteratura

No fundo é um pobre triste
falta-lhe um abraço e ser amado
Sempre de punho em riste
ainda acabará institucionalizado

Transhümantes disse...

Grande paciência e que grande coçadeira!
Mas há uma soez agnação entre os chatos desta pentelheira, é que a ti toca-te sempre desta cambulhada, os ególatras de meândricas ideias de pouca ou nenhuma substância donde derivam apenas monólogos bochornosos.

...um dia destes deixar-te-ei aqui uns poemas que ando a escrever em escrita ibérica levantina, altamente profundos mais basalíticos que megalíticos.

Saúde!

hmbf disse...

Paciência, é essa a palavra.

Jorge Melícias disse...

Epá, isto muda tudo de figura! Quando o santo padroeiro dos mansos de espírito, o irredutível vingador tresmalhado, o impagável m. asinino. domingos, sai do conforto da sua anta-caverna e, lançando mão da melhor verve aleixiana, diz da sua justiça, é altura para entregar os pontos. Glória aos vencedores, honra aos vencidos e palha a rodos.

manuel a. domingos disse...

Esqueci dizer que as quadras por mim publicadas são dedicadas ao senhor Jorge Melícias. Não vá alguém pensar que sou chato como ele. E, daí, talvez seja.

hmbf disse...

Ó Melícias, vai traduzir heterónimos.

Jorge Melícias disse...

Achas mesmo que é por aí que me atinges, ó fialho? A lisura com que tratei o meu erro fala bem da tua pequenez. Eles estão traduzidos, e bem traduzidos. Olha, Desfruta deles em vez de andares com flics para depois voltares aos flacs que as tuas costas já não dão para isso. Ou então continua a ensaiar princípios sólidos para o teu tal novo evangelho. A coerência será a mesma, mas a lombar ressente-se menos.

hmbf disse...

Lisura? Está patente nos teus comentários.
Já pediste desculpa ao espanhol?

O que me espanta é continuares a passar por aqui. Deves gostar mesmo deste weblog. Olha, que te faça boa companhia. Os tempos estão difíceis para todos, eu sei, mais ainda para as pobres almas solitárias.

Cumprimentos à família.

hmbf disse...

Ah, e já que falas nisso, não estão assim tão bem traduzidos. Há umas gralhitas em matéria de pontuação. Nada de grave, é certo. O Jorge é bom tradutor, o Jorge é bom tradutor, o Jorge é tradutor, ninguém diga o contrário (melodia do For He's a Jolly Good Fellow).

Jorge Melícias disse...

Sim, lisura. Sabes o que é? Reconhecer um erro, cometido inadvertidamente, e assumi-lo sem fugir ao vai e vem do ócio dos justiceiros de bancada. E foi isso que fiz na altura. Nem mais nem menos. Mas tu não sabes nada disso. Tu é mais aquele oportunismo soez, o estar de atalaia para não perder a oportunidade para revidar "com desprezo" contra "o próximo 'criaturo' que nos fere" (não tenho presente a ordem dos mandamentos, eles pululam por aí).
No que ao resto diz respeito não te diz respeito.

Quanto à qualidade das traduções, deixa lá outra vez os flics-flacs que isso é só patético. E doloroso, calculo.

E sim, esta alma solitária gosta deste weblog. Tanto é assim que te propus o que propus, e por certo aí ter-me-ias alertado para a minha leitura errada. Não sou é um dos compinchas acríticos com que estás habituado. Elogio com o mesmo à-vontade com que critico.

Cumprimentos à família também.

hmbf disse...

No que ao resto te diz respeito, pois pois... Vai-te embora, ó chato.

Jorge Melícias disse...

Escreve-lhe a fazer queixinhas e assim sacias, de um passo, a curiosidade. Dá lá lustro a esses galões de justiceiro, ó zurro. De certeza que ele se importou muito com o sucesso do logro. Por certo intenta uma acção em prol da tua dissimulada indignaçãozinha, só para te ver calado. Ou então avança mesmo contra o estado português. Palhaço!

hmbf disse...

Pobre figura. Que tenhas muita saúde.

:-)

Jorge Melícias disse...

Sou eu, tu e o da Mancha. Muita saúde também, o resto é só arrufos.

Gonçalo Fernandes disse...

«Uma ironia dócil rebaixada ao efeito cómico do poema-piada»? Porquê rebaixada? E que coisa é um poema-piada, exactamente? A primeira vez que dei com esse termo foi num artigo que pretendia resumir a poesia portuguesa contemporânea (não me recordo de quando, nem do autor, nem onde li) e fiquei com a mesma dúvida (sincera - isto não é um manifesto; é preferível uma discussão aberta, um diálogo fecundo): é o quê? E desde quando é vulgar esse «artifício»? Desde os poemas de Sebastião Belfort Cerqueira, poeta tão bem acolhido neste blog quanto no leitor que é a minha pessoa? Virá de Nuno Moura ou de Alberto Pimenta? Ou desde os textos humorísticos de Adília Lopes e das canções de Manuel João Vieira? Ou desde a orgia de fernandos pessoas n'O Virgem Negra? Ou é mais ali para o António Aleixo, nas traseiras do Quim Barreiros? E a longa tradição de poesia obscena portuguesa? A Torre de Babel, de Guerra Junqueiro, é isso? Ou sê-lo-iam os apólogos dialogais de D. Francisco Manuel de Melo, caso tivessem sido escritos em verso? Bocage, em tantos momentos? Camões (sim sim), em certos momentos? É um artifício de Gil Vicente mas antes de vulgarizado e colocado ao serviço de composições curtas, contemporâneas, instagramáveis? A literatura de cordel oitocentista? São poemas-piada tantos e tantos haikus dos grandes mestres japoneses? Ou os epigramas de Marcial? E Catulo? E se os diálogos de Luciano ou as piadas filosóficas de Chuang-Tse fossem em verso, etc.? Hã?
Se a expressão quer dizer o que parece, o tal poema-piada é milenar. Ou vejo mal, e o termo - uma vez que tanto este texto como o artigo onde primeiro o li se ocupam da poesia contemporânea - refere-se exclusivamente a ela? Se sim, porquê a conotação negativa? Não pergunto retoricamente: não sei, com franqueza! O problema é a qualidade da piada? O bom gosto? O mau? O grau de refinamento? Se permite ou não alguma espécie de transcendência? Retire-se da enumeração os nomes dos autores que não são poetas "acima de tudo", se é que isso existe, e se é que isso enevoa de alguma forma a dúvida: conserve-se esta.

Gonçalo Fernandes disse...

Caso queiramos ficar nos autores contemporâneos portugueses, recordo-me de algumas poesias de Jorge Sousa Braga (e não me refiro às dos livros infantis, mesmo não as considerando exteriores ao que se costuma chamar de corpus poético do autor - nem sequer inferiores às que o autor fixou como tal, em nenhum sentido), de um divertido quebra-cabeças de José Luís Costa, que transcrevo no final, tal como uma breve poesia de Rui Azevedo Ribeiro. São poemas-piada? Não o são por possuírem alguma virtude específica que os livre desse estigma? Não o são por não fazerem rir? E quais?
Bem sei que será difícil obter uma definição rigorosa, mas já me daria por satisfeito com uma tentativa de aproximação ao... conceito (não sei que nome lhe hei de dar porque não sei o que é).
Conhecendo o gosto do autor deste blog pelo jazz, talvez as respostas possíveis a esta questão sejam, quando comprimidas por fronteiras, tão aquosas quanto aquilo a que hoje se chama jazz (o que é que ainda é e o que é que já não é e tal), mas há sempre a possibilidade de dizer, como Archie Shepp, se não estou em erro, que o jazz não existe; que o que há é black art music. Não sei se era exactamente assim, por estas palavras, mas era isso.
Ah, ainda sobre a possibilidade de transcendência (este sim, um termo actualmente bastante vulgarizado), uma vez que falei nisso: o que é o riso? Não digo o que desperta o riso, mas o que é, atendendo à forma como se manifesta (desfiguração do rosto, emissão de ruídos muito pouco razoáveis, convulsões esquisitíssimas, deformações e contracções corporais variadas e felizes, destruição da consciência do próprio ridículo, perda involuntária das faculdades de auto-censura física - e bem sabemos como a tentativa de reprimi-lo resulta tantas vezes numa figura ainda mais catastrófica -, etc. e tal). Atendendo a estas manifestações tão irracionais, tão estrangeiras ao comportamento humano habitual, não será o riso uma transcendência sempre, independentemente da "qualidade" da sua causa? Mesmo o riso interior, sem repercussão física aparente, ou apresentado-se tão discreto como um sorriso - julgo que se compreende o que isto quer dizer. Não? Não faço ideia, mas já vai longo o matutar e ainda falta transcrever o poema de José Luís Costa e três haikus quiçá condenados a levarem com o selo (pejorativo, conforme o entendi nos dois textos a que me reporto - corrijam-me se entendi mal) de poema-piada. E, já que estamos aqui, passo também a definição de riso segundo Kant, pois me parece que outros autores (e são muitos) que abordaram o tema, como Baudelaire, não terão passado da causa, do gatilho, da natureza do que faz rir. Não é disso que falo e não é disso que fala Kant na segunda passagem. Foge um pouco ao que me trouxe até aqui, mas não faz mal. Kant diz que o riso é um efeito, algo cuja causa «deve consistir na influência da representação sobre o corpo e a acção recíproca deste sobre a mente» e caracteriza-o do seguinte modo: «O riso é uma afecção proveniente da súbita transformação de uma expectativa tensa em nada».

Gonçalo Fernandes disse...

COM A TUA COLABORAÇÃO


Leitor,
para que este poema se concretize
- no sentido mais fundo da palavra -
vou-te pedir um nadinha de fé.

Que te abstraias da crise
ou do mal que te fez uma tal de Louise
ou da unha que se te encravou no dedo grande do pé,

e que te embrenhes no seguinte:
neste poema há uma sílaba,
- não te vou dizer qual é -
pode ser a primeira, lei, ou a última, eio,
ou qualquer outra das que estão de permeio,

uma sílaba talismã,
uma sílaba chave última.

(A minha arte é ainda incipiente
mas graças aos clássicos
cheguei a este cume surpreendente.)

Uma sílaba talismã,
uma sílaba chave última

que quando detectada
contemplada sussurrada

é a chave que abre o poema
que se torna
chave que abre o leitor
que se torna chave que abre o país
que se torna
chave que abre

fauna e flora e sonhos e vigílias
e astronomia e astrologia
e agronomia e gastronomia
e Louises e Veras e Marílias.

A criação duma ponta à outra
(anexos desconhecidos incluídos),

o silêncio do criador,
o barulho de Ludwig Van compositor

e até essa secreta razão
afinal tão pura e benevolente
(tão parte da grande equação)
pela qual tens uma unha doente.

Tudo por uma só sílaba,
uma só peça,

leitor considera esta promessa.

Aviso que encontrá-la
pode não ser pêra doce:

pode não ser à primeira,
pode não ser à terceira,
mas por volta da quadragésima oitava
quase te dou garantia.

Não te assustes com o exemplo do meu primo
que à trigésima sexta sofreu uma embolia.

Não creio que volte a ocorrer.

Leitor,
vou ser mais franco.

Não é bem uma sílaba,
é meia sílaba.

Leitor,
vou ser ainda mais franco.

Não é bem meia sílaba,
é um oitavo.
Não é bem um oitavo,
é uma fracção menor,
é uma fracçãozinha tão franzina
uma tão fracçãzina,
que faz lembrar o último sopro
de calor a abandonar o chá,
antes que se possa dizer: «arrefeceu».
Ninguém deu por ele.

Leitor,
se não a encontrares, deixa estar,
é porque não era para ser.
Não te deixes abalar,
não percas a tua paz,
não faz mal.

Uma fracção de sílaba tão discreta,
uma menina tão calada no recreio.


José Luís Costa




«BRAZIL NIHIL»


Vermelho
E negro
A camiseta do Flamengo
A secar no Stendhal


Rui Azevedo Ribeiro




HAIKUS


Despertado
por um peido de cavalo
vi pirilampos voar


Kobayashi Issa




Picado pelas pulgas
foi então verdadeiro
este sonho com sabres?


Takarai Kikaku




A idade da lua?
eu diria treze anos -
mais ou menos!


Kobayashi Issa

Gonçalo Fernandes disse...

P.S.: Tive que partir o texto por causa do número de caracteres. Como é que eu sei se apareceu todo ou se tem cortes? Obrigado.

hmbf disse...

https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Poema-piada

hmbf disse...

Sugiro também que explore o autor deste livro: The Poetry Home Repair Manual: Practical Advice For Beginning Poets (2005). E que a partir daí investigue a relação entre poema e anedota que se deu a partir de Dada e etc. Não confundir anedota com sátira ou ironia, ainda que possa conter ambos, e muito menos com pornografia ou mero erotismo também é um bom princípio. Bom trabalho.

Gonçalo Fernandes disse...

Obrigado, Henrique, mas já tive problemas há pouco tempo com uns cds que mandei vir de Inglaterra e que ficaram presos na alfândega.
Não há diferença substancial entre as poesias humorísticas dos autores mencionados na wikipédia e as dos que citei de há quinhentos, dois mil anos atrás. Dizer que o surgimento dessa designação é tardio é pouco.
Encontrei os artigos a que me referia. São de um crítico chamado António Cortez, que a esse respeito cita muito muito muito Gastão Cruz nas notas marginais. Uma vez mais, não se vislumbra justificação para a desqualificação severa e total dos textos desse tipo, quer dizer, é tão gratuita como o costume de apresentar a maturidade enquanto virtude. Ninguém diz porquê, como se fosse um axioma... Não é. São aliás dois juízos, sempre servidos como verdades, bastante discutíveis! Cumprimentos.