sábado, 6 de março de 2021

UM POEMA DE LUIZA NILO NUNES

 


BARTOLOMEA, BENEDETTA
 
Meu amor,
sobre os meus seios verterás o leite roxo da paixão,
sobre o meu sexo pousarás tua semente,
a minha carne infrutuosa
há de servir-te de plantio
e ao acordar terei na boca um esplendor de magnólias.
 
Meu amor,
povoarás os olhos bíblicos da pomba
que em meu peito se detém,
a pluma leve do seu sopro
e do seu voo a transparência e a lucidez,
terás nas mãos um batimento secretíssimo de aves.
 
Meu amor,
sei que virás sobre uma égua sem arreio,
um potro belo que incendei os meus estábulos
e desperte no meu sangue
a floração de uma videira melindrosa.
É que noturnos animais são os meus ombros
esmagados pelas facas da tristeza,
é que nos lenços congelados dos invernos
minha boca sangra lírios dolorosos.
 
Meu amor,
para que eu brilhe como os lírios
bombeados pela luz, tu chegarás.
Do teu cavalo hás de acender a escuridão da sua crina,
do meu corpo a sua flor de invalidez.
 
Vem visitar-me, meu amor,
antes que eu corte os meus vestidos
ou desate os meus cabelos perfumados de mênstruo,
antes que eu abra para os mortos a alegria do meu sexo,
o aquático sepulcro dos meus peixes cor-de-rosa.
 
Meu amor,
punhais de água deitarás sob os meus pés,
a minha pele que segrega hereditárias solidões
há de ser limpa nas esponjas do teu beijo,
enxaguarás a minha face com o sangue do cordeiro
e andaremos por um círculo de balidos estridentes.
 
De um só golpe, apalparás a cordilheira dos meus rins
onde se apertam as artérias
e os tentáculos da ténia.
 
Então dirás que nos meus gestos arde ainda
o coração da mariposa,
que o meu útero macio traz a sombra da criança,
que os meus lábios de livores repercutem orações
que se levantam para as cúpulas dos olhos da criança
e o meu amor é um eflúvio violento
inflando rosas e laranjas nos alpendres,
 
que o meu corpo onde o amor se fez aéreo e circular
já se levanta dos seus lívidos invólucros de treva.
 
Então dirás: enfia pérolas na boca,
fura os olhos dos defuntos de cristais
para que brilhem como espíritos
ou lâmpadas nas águas.
 
Meu amor,
por uma mexa de cabelo ensolarado
ou o sangrar de uma videira
que se alastre do meu vale à tua boca,
invocarás a abadessa Benedetta
e o esqueleto da irmã Bartolomea,
invocarás o jaspe negro dos seus ossos
e a leveza dos seus finos calcanhares,
 
cravarás na tua língua crucifixos e pombas,
lentamente beijarás os seus vermelhos genitais
e sob o hausto da videira
provaremos frutos cálidos e rubros
que as noviças morderão como segredos.
 
Meu amor,
porque o teu rosto foi tocado pela febre
e o dedo fúnebre de deus,
porque selaste as tuas pálpebras
na sombra, és minha irmã.
Em nossos pulsos vingam pássaros voltados para as
velhas avenidas da morte
e atravessados de obscuras cotovias e projéteis
nossos ventres são servidos sobre a prata dos banquetes,
sobre eles pousarás a violeta, flor bubónica
da noite em que nascemos.
 
Meu amor,
onde termina a solidão da tua carne
a minha carne principia.
 
Luiza Nilo Nunes, in revista Tlön, n.º 5, tema: Paixão, Fevereiro de 2021, pp. 35-37.


1 comentário:

Luiza Nilo Nunes disse...

Grata pela partilha, Henrique! Um abraço.