segunda-feira, 17 de maio de 2021

TERRA NATAL

 


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Admito o preconceito, mas certos aspectos na biografia de um autor contribuem para reforçar ou atenuar o interesse gerado pela obra. Seduz-me a tentação de supor uma existência por detrás das palavras, imaginar que são o sangue vertido por um corpo a cicatrizar. Não sinto qualquer desconforto quando o anonimato quebra a corrente, mas como negar o fascínio exercido pelo desvio e pela errância? Já não tenho idade para me deslumbrar com ideias feitas acerca da grande aventura que é estar vivo, sendo-me facilmente perceptível quão misteriosa, angustiante e tremendamente dolorosa pode ser a existência de um gorila no interior de uma jaula. Esta clausura da natureza, o selvagem domesticado, é porventura a mais repisada das formas de viver na contemporaneidade, a qual tem as suas contradições e os seus paradoxos como qualquer outra, mas precisamente por me parecer tão vulgar e nela me encontrar tão imerso é que me espanta quem a contraria aventurando-se no interior de florestas desconhecidas, atravessando o deserto, experimentando adversidades, superando contrariedades, para tombar exausto no cume da montanha acabada de escalar. Ou quedando simplesmente a meio caminho, ainda assim caminhando. Quanto ao tédio e à monotonia do ramerrão doméstico vejo-os como ao desafio colocado a alguém atirado para dentro de um labirinto, convencendo-me de que em muitos casos aquele a quem fosse dado o mérito de encontrar a saída sentir-se-ia tão perdido do lado de fora que desejaria regressar imediatamente ao interior de onde saiu.

Há pormenores na biografia do dramaturgo Daniel Keene (Melbourne, Austrália, 1955) que permitem compreender quanto destas duas dimensões terá contribuído para a arquitectura de uma obra onde vislumbramos tanto o quotidiano trágico da vida doméstica como a errância daquele que parte à aventura. É um autor, como se costuma dizer, que terá passado as passas do Algarve antes de obter reconhecimento. Sabemos que chegou a quase mendigar na Nova Iorque dos anos 80, a dos yuppies capturados pelo grande sonho americano. Familiarizado com os movimentos de contracultura preponderantes no núcleo de resistência à massificação uniformizada do espectáculo, Keene optou por um teatro ao mesmo tempo realista e estranhamente poético no modo como aborda a história. As duas pequenas peças montadas pelo encenador Luís Varela no Teatro da Rainha ajudam-nos a equacionar mais esses mecanismos de aproximação à realidade do que a formular ideias feitas e generalizações sobre a forma como o quotidiano e a experiência vivida se imiscuem na linguagem poética e teatral. Desde logo, são duas peças muito diferentes uma da outra. A Chuva foi escrita como um monólogo, Terra Natal é um encadeamento de sketches fugazes. A primeira desloca-nos para o campo indefinido da memória, a segunda confronta-nos como um reflexo num espelho. O que ambas liga é do domínio da subjectividade, embora possamos encontrar nos dois textos a força de um passado que vem à tona através de memórias e de recordações que são também um questionamento sobre as raízes das personagens.

A Chuva remete-nos para o holocausto nazi, mas fá-lo a partir de um conjunto de alusões e não propriamente de enunciações claras e inequívocas. A velha interpretada pela actriz Isabel Lopes desdobra-se na voz manipulada e na presença física de duas outras actrizes, oferecendo ao discurso a profundidade e o intimismo de uma história enraizada em memórias particulares de um acontecimento universal. Olha-se aqui para a História tendo como ponto de partida uma experiência singular. Onerosas são as memórias que advêm ao rosto de Isabel Lopes e se prolongam nas vozes de Lavínia Moreira e Sara Delgado, elegia pelas vítimas de um extermínio que o tempo parece querer apagar como o faz à matéria transformada em pó ao longo dos anos. É também a esta transformação operada pelo tempo que assistimos, uma transformação projectada do eco fantasmagórico da infância ao rosto envelhecido à boca de cena. Já em Terra Natal este elemento ameaçador do esquecimento surge, precisamente, na personagem igualmente interpretada por Isabel Lopes, uma divertida mas ao mesmo tempo angustiada avó empenhada em transmitir ao neto o conhecimento das suas raízes. É uma peça social, se assim podemos dizê-lo, de forte consciência cívica e com a clara intenção de dar voz aos desafortunados, gente dilacerada pela rotina, pela monotonia, pela tal domesticação do selvagem no início deste texto aludida. A ameaça de desemprego que recai sobre o pai, vigorosa interpretação de Nuno Machado, produz efeitos nefastos no seio de uma família em crise. E essa pode ser uma das temáticas do texto, ou seja, o modo como a vida íntima acaba por ser afectada, condicionada, para não dizer determinada por golpes exteriores, pelo ambiente social e cultural em que o indivíduo se encontra. De sublinhar, porém, que o princípio e o fim da peça estão marcados pelo aniversário do filho adolescente, interpretado por Carlos Batista, o qual se vê no contexto muito mais ambíguo e ambivalente de entrada na vida adulta, até porque nesse contexto repercute a tragédia dos adultos em cena — como se ao vermos o jovem casal estivéssemos a ver o que o pai e a mãe foram, como se ao olharmos para o pai e a mãe estivéssemos a assistir ao que o futuro reserva para o jovem casal. Há uma espécie de herança processada entre as personagens que estabelece um jogo de intercâmbios: a solidão da avó, a ausência de perspectivas da mãe, a frustração do pai, parecem estar a ser transferidos para um casal de adolescentes em alegre vertigem passional mas prestes a descobrir, em bom português, o que a vida custa. E essa é a verdadeira tragédia, perceber que não há saída. Ou, em havendo, regressar ao labirinto.

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