terça-feira, 18 de maio de 2021

MINOR IMPULSE (1961)

 


A cabeça dividida entre um turista bêbado e um emigrante do Causse. «Ando na minha terra como um estrangeiro», diz o segundo. E não custa dar-lhe corpo, é como se fosse eu a falar. Perdido, exilado, estrangeiro na minha própria terra, na minha própria respiração, desenraizado, a esmo. Já ninguém diz a esmo. O turista é número, gag, enrola palavras, ronca. Penso nos ingleses distribuídos pelas ruas algarvias, nos holandeses aterrados no oeste, como aqueles com quem convivi na adolescência e não deixaram saudades. É claro que preferia fazer de músico de jazz. A ter de representar um papel que não o meu, que me atribuíssem qualquer coisa ao estilo o que gostavas de ter sido se chegasses a ser grande. Gostava de ter sido Ike Quebec, viciado em heroína, morto aos 44 com cancro na língua, era o que gostava de ter sido. Já vivi mais 3 anos do que devia. Em boa verdade, acho que levo 20 de desperdício. Agora não há nada a fazer, o mal está feito, a quebra aos cinco minutos de Don’t Take Your Love From Me, posso entrar pelo palco adentro aos berros, fingir que sou feliz e amado, posso imitar um quadrúpede, andar de quatro, ganir como um cão desesperado, posso arrancar a carne com as unhas e vomitar desespero pelo poros que ninguém dará por isso. Fingir-me sereno, feliz, está tudo bem, não se passa nada. O que é que se passa? Nada. Serei apenas mais um a fazer número na peça ensaiada pelo destino, a sala vazia, luzes baças, projectores desligados, acção imóvel. Ike Quebec e Grant Greene no estúdio a gravarem Blue and Sentimental, eu à escuta, ouvido encostado à parede, do lado de fora, ainda antes de ter nascido. Do lado de fora.

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