terça-feira, 8 de junho de 2021

KAHLIL THE PROPHET (1963)

 


Uma história sem interesse: ainda relativamente novo, o saxofonista alto Jackie McLean sacou de uma faca para se defender de um Charles Mingus alterado. Este esmurrara-o, não se sabe porquê. Ou sabe-se, mas eu não quero saber. O que me interessa é a interrupção do gesto. Imaginemos que McLean tinha esfaqueado fatalmente Mingus. Estávamos no início da década de 1950. Imagine-se o que se perderia com Mingus morto e McLean preso, provavelmente para o resto da vida. Em liberdade pôde viciar-se em heroína, gravar Destination Out! com Grachan Moncur III, genial compositor de quem se fala tão pouco, pôde fundar o African American Music Department e formar o filho René McLean, criar com a sua mulher, Dollie McLean, o Artists Collective, Inc. de Hartford, pôde ser uma pessoa normal e deixar um legado. Um gesto, um simples gesto tudo altera, desvia a rota, trepana-a e desconcerta-a. Num passeio pela serra, um passo a mais na direcção do abismo pode ser fatal. Mas não é à morte súbita que me refiro, é antes a uma vida inteira e demorada carregando o peso do gesto determinante, da decisão que nos perseguirá para sempre como uma sombra de que nos libertaríamos houvesse essa possibilidade. Momentos em que a vida inteira se inclui como gérmen numa barriga de aluguer. É a esses momentos que me refiro e à dúvida que fica sobre como seria o presente se não tivéssemos passado por eles, se tivesse sido outro o caminho escolhido na encruzilhada diária, contínua, da existência. Momentos proféticos, oraculares, decisões em que o eco no futuro escutado repousa em silêncio como ruído em potência.

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