domingo, 6 de junho de 2021

PRIMEIRO POEMA DO EXÍLIO

 


I. EXÍLIO

1.
um não lugar sobre a terra

prende-se ao coração
como animal de trela
a terra a que chamamos mãe
até que um dia crepuscular
o sol lhe bate de frente como um castigo
e a recusa progenitora e a renega cão vadio
e aos filhos trai impondo o extermínio
é quando o chão se mistura com o corpo
e pasa a ser pele preocupação fissura
bicho doméstico que nos olha em fome
quando o em volta começa a esfumar-se
incêndio na carne impropério
e a linguagem parece desaprender o seu desígnio
de ser ponte ramo ou rio

mas tem a terra mais sabedoria do que os homens
talvez porque não sente ou sabe nada ser para sempre
e pressentindo se antecipa ao sentimento
murmúrio assinala o tempo de partir o tempo de esquecer
e assim ensina aos homens que é longe das paixões
o curso natural das coisas e das casas
donde que o que tinha sentido e afecto
assume a sua finitude a violência do destino
e então o lugar passa a ser um não-lugar
a terra um vazio de deus e do crer

em menos de um céu de tempestade
a pele de cordeiro que o homem veste
leva-o a duvidar do sentido e da pertença
sobre o solo milenar que chora
a ficar em cuidado e a terra súbita parece abrir-se
como se quisesse examinar-se por dentro da secura
nos côncavos da vertigem e da insânia
a terra que já não chama o colóquio das virgens
a contemplação das sombras em torno
da fogueira dançante das crianças
por dentro do riso e do encantamento
em abono do mal a terra parece gritar
incompatibilizada com as searas as estações e as magias
como se um tempo maduro por excesso
houvesse nela lavrado um abismo insuperável
irmanando vermes e pedras homens e plantas —
o absurdo da cruz ou da coroa em espinhos.

e o dia vem em que aos augúrios e aos anciãos já ninguém
concede préstimo ninguém consulta ou interroga
mas como proceder quando já não nos reconhecemos
na forma do humano? como regar a nossa vontade
e alimentar o riso dos nossos filhos agora sem o dom das águas?
sem o sopro das borboletas o outro do trigo?

tornou-se noite antes da noite
a luz e o mel dos dias devêm memória corrupta
como o são as liras e os cantos de barro das correntes
águas que outrora se diriam cavalos sem freio
promessas de delírio e encantamento
cujos peixes eram dança conluio de brilho e abastança
milagres do excesso e abundância
ao próprio vento como a um jarro se quebraram as asas
derisão ou fundo de vaso grego
negra narrativa do sombrio
os pássaros partiram para outros jardins
a inscrever a liberdade noutros céus
o centro da aldeia a malga o pão partilhado
ficaram vazios escoroados agora dança nenhuma
ou invocação de divindades fará reverberar
um estremecer no olhar dos velhos
exumando o passado das tardes e vinho
rente ao aroma florescente dos sexos ao hino das mulheres
a caça e o sangue rescendendo como dádiva

era isso quando havia sombras vivas sobre a terra
porque as árvores eram ainda de raízes fundas
e delas brotavam ramos e folhas e raios de luz
e havia formigas e libelinhas e despreocupação
fartos os seios das mulheres
e todo o tempo parecia breve para tanto viver
e pouco ou nada aquele perturbava
no desconcerto do ordenado caos do acontecer

mas até o chão reclama quando é muita a rega
e tudo aquilo que era tal doce lembrar
tomava lentamente as formas do deserto e ameaça
enleio de ferida engastada nos rostos
a fome sugava lentamente os ossos do gado
a desconfiança medrava como cancro e até entre amigos
a música por vezes se calava e começavam as palavras
a ganhar peso e a pensar duas vezes
antes de estenderem a mão ao outro.
e veio a privação que sucede à fome
e com ela o exército da miséria e cegueira das almas
vieram as sombras debruçadas em pesadelos
e com elas os medos cruéis
as noites de maus pressentimentos
sonos inquietos luz em fuga — e era esse um tempo
em que a palavra deus já quase nada respondia.

Pedro Teixeira Neves, in A Parte que Nos Toca, Editora Labirinto, s/d (2020?), pp. 9-11.

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