terça-feira, 30 de novembro de 2021

O LIVRO DE THEL

 


Moto de THEL

A Águia sabe o que está no fosso?
Ou vais perguntar à Toupeira:
A Sabedoria cabe num bastão de prata?
Ou o Amor numa taça dourada?

THEL

I

As filhas de Mne Seraphim guardavam os rebanhos radiosos.
Todas menos a mais nova; ela, pálida, buscava o ar secreto.
Murchar como o esplendor matinal nos eu dia mortal:
Junto ao rio de Adona ouve-se a sua meiga voz:
E o seu doce lamento cai como o orvalho da manhã.

«Oh vida desta nossa Primavera! porque murcha o nenúfar?
Porque morrem os filhos da Primavera? nascidos pra sorrir & fenecer.
Ah! Thel é como um arco-íris e como uma nuvem que se desfaz,
Como um reflexo num espelho, como sombras na água,
Como sonhos infantis, como um sorriso num rosto de criança,
Como o arrulho da pomba, como o dia que passa, como a música no ar;
Ah! possa eu deitar-me docemente, e docemente pousar a cabeça,
E dormir docemente o sono da morte, e ouvir docemente a voz
Daquele que caminha no jardim durante a noite.»

O Lírio do vale, que respirava no meio da erva modesta,
Respondeu à bela donzela e disse: «Eu sou uma erva aquática,
Sou pequenina, e gosto de morar em vales humildes;
Tão frágil, que a borboleta dourada mal me pousa na cabeça.
Mas os céus abençoam-me e ele que tudo vela a sorrir
Caminha pelo vale, e todas as manhãs passa a mão sobre mim
Dizendo, 'rejubila erva humilde, recém-nascida flor do lírio,
Doce menina de silentes vales, e de modestos regatos;
Pois serás coberta de luz,e comerás do maná matinal:
Até o calor do Verão te derreter nas fontes e nas nascentes
Para brotares em vales eternos'; Porque há-de Thel queixar-se,
Porque há-de a senhora dos vales de Har suspirar?»

A erva calou-se & sorriu a chorar, depois sentou-se no seu templo de prata.

Thel respondeu: «Ó virgem pequenina do vale tranquilo,
Que acodes aos que não podem implorar, aos mudos, aos fatigados,
O teu fôlego nutre o cordeiro inocente, ele cheira-te as vestes leitosas,
Colhe as tuas flores, enquanto estás sentada a sorrir-lhe na cara,
Limpando-lhe a boca mansinha de todas as máculas contagiosas.
O teu néctar purifica o mel dourado, o teu perfume, 
Que espalha sobre cada folhinha de erva que brota,
Revigora a vaca ordenhada, & sossega o fogoso corcel,
Mas Thel é como a nuvem esbatida que o sol nascente incendeia:
Desvaneço-me do meu trono perlado, e quem encontrará o meu lugar?»

«Rainha dos vales,» respondeu o Lírio, «pergunta à nuvem ténue
E ela há-de dizer-te porque cintila no céu da manhã,
E porque irradia a sua beleza brilhante no ar húmido.
Desce, Ó nuvem pequenina, & paira diante dos olhos de Thel.»

A nuvem desceu, e o Lírio inclinou a cabeça modesta:
E foi aos seus muitos afazeres no meio da erva viçosa.


William Blake, in Sete Livros Iluminados, moto e primeira parte de O Livro de Thel, tradução de Manuel Portela, Antígona, Julho de 2005, pp. 65-69.

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