domingo, 26 de dezembro de 2021

ANIMAIS DO OCASO

 

   Será desta? A editora Exclamação inaugurou este ano uma Colecção Afrikana com o livro Animais do Ocaso (Agosto, 2021), do moçambicano Álvaro Fausto Taruma (n. 1988). Será desta que vamos encontrar interesse pela nova literatura produzida nos países africanos de língua oficial portuguesa, à semelhança do entusiasmo por cá existente relativo à poesia brasileira contemporânea? Esperemos que sim. O posfácio assinado por António Cabrita refere-se a uma nova geração que tem estabelecido contactos, através da internet, com «outras tradições e coordenadas literárias», no pressuposto de que a marca excessivamente politizada da poesia moçambicana posterior à independência vem sendo ultrapassada por perspectivas cosmopolitas da criação artística e pela adesão a linguagens mais ambíguas, não delimitadas por um realismo social tantas vezes propagandístico e panfletário.
   Neste volume publicado em Portugal, Taruma reuniu poemas que julgamos provenientes dos seus dois livros iniciais: Para uma Cartografia da Noite (2016) e Matéria para um Grito (2018) — este último granjeando o Prémio BCI de Literatura para melhor livro do ano. Nenhuma nota indica que tais livros aqui estejam nas suas versões originais e integrais, ainda que tal seja provável, aos quais se terá juntado o conjunto intitulado Animais com Cordas no Coração e desenhos de Ídasse Tembe. São recolhas desde logo ligadas pela prática alternada do poema em prosa e em verso, sendo que nos primeiros descobrimos, aqui e acolá, estranhas conjugações verbais e uma sintaxe nem sempre convencional ao serviço de imagens poderosas — «cada noite é uma morte vivendo em mim» (p. 20) — e confissões aforísticas onde ressoam latidos de uma acutilante crítica social: «Neste país, onde escrever é crime, eu escondo o meu diário como quem esconde a sua munição» (p. 21).
   O tom de guerrilha, contudo, já não se subsume numa qualquer consonância com agregações sociais, impondo-se antes enquanto afirmação de uma individualidade em permanente conflito com a realidade. Esta é dolorosa, a dor que provoca impede o sono redentor, o sono em que os sonhos germinam, torturando o ser com a insónia como quem flagela a pele sensível do poema. O texto adquire, então, uma compleição onírica, como se fosse o último reduto de uma paz desejada. Surge do cansaço, do desassossego, da saturação, como uma espécie de náufrago à deriva num mar de afogos.
   À condição insular do sujeito poético não deverá ser estranho o facto de o Autor haver nascido em Inhaca, uma ilha situada à entrada da baía de Maputo, e aí ter vivido os primeiros 16 anos de vida. A cartografia da noite desenhada por Álvaro Fausto Taruma corresponde, deste modo, ao mapeamento de uma geografia interior, uma espécie de cartão-de-visita onde as coordenadas da sua poesia ficaram delineadas para serem posteriormente desenvolvidas e aprofundadas: «Escrevo nesta forma rupestre de mascar a tinta, de raspar a pedra, o fósforo onde os vocábulos acontecem, o verbo, antes, o nervo, com que a palavra aspira o fogo» (p. 47).
   Um aspecto deveras estimulante destes poemas é o modo como recuperam, num contexto de modernidade, a antiquíssima solidariedade entre o poder criativo e destrutivo do homem e os ciclos misteriosos da terra, sendo isso mesmo perceptível em passagens onde a certos aspectos da prática poética se atribuem características da relação humana com a natureza: «O silêncio, minerável substância no interior dos versos esquecidos, relembra-me essa mulher repartida entre o arado e o falo, e a pele de cacimbo por sobre o respaldo das manhãs» (p. 46). O poema aparenta-se a um campo de cultivo, e o amor é a luz que o guia. As reflexões acerca da escrita no interior da própria escrita, longe de serem exaustivas, fundamentam nestes poemas a desmatação e a lavra de um território já semeado, um território agreste mas com hipóteses de redenção a desabrochar como uma planta no meio do alcatrão.
   Por vezes diarísticos, quase confessionais, alguns poemas permitem perceber a demanda de uma linguagem que pudesse libertar-se e existir como um animal selvagem, resgatando o sujeito desse íntimo estado de cansaço domesticado por um quotidiano atroz — «Há dias em que abrimos as páginas dos jornais somente para ver o quanto do dia morre connosco» (p. 84) — que provoca a insónia e, por isso mesmo, impede o sonho. Paradoxalmente, é desse impedimento que a poesia surge. Não redime, mapeia, cartografa, desenha. Não há nenhuma sorte de salvação no horizonte, há uma intenção que resulta de um processo de autoconhecimento que vai sendo renovado pelo exercício da palavra. E aí o poema está ao serviço de qualquer coisa, pode até ser um exercício de organização da consciência, um lembrete:
 
LEMBRETE
 
Meu amor, já não te pressinto outro senão este magro corpo de Janeiro
mas ainda pousam em ti os pássaros e brincam as anémonas na alvorada.
No teu rosto repousam as cinzas do esquecimento, todos os dias
passeio a tua imagem e já não sei de alegria que não me viesse pelos teus lábios.
Sei que os felizes bebem vinho nas tardes de domingo, nós bebemos
das nossas bocas o pão que amassou esta mão e repartiu o Senhor
como o sopro do seu perfume. Tivesse agora um velocípede
e levar-te-ia por uma estrada onde a morte fosse impossível.
 
Álvaro Fausto Taruma, in Animais do Ocaso, Exclamação, Agosto de 2021, p. 78.

Sem comentários: