terça-feira, 28 de dezembro de 2021

NOVOS LIVROS

 

(aqui)


José Augusto Nunes Carneiro perguntou, eu respondi. Quem tiver interesse, siga o link acima ou leia aqui:
 
P-O que representa no contexto da sua obra o livro “Micróbios”?
R- É-me difícil responder-lhe a esta pergunta. Não penso nos meus livros, e vão 16, enquanto partes de uma obra. Não me propus construir nada quando comecei a publicar. Em havendo um edifício a que chamar obra, então ele é como a escultura invisível de Salvatore Garau. Mas vale muito menos. Portanto, este livro representa mais um livro. Oculto, imperceptível, é preciso um microscópio para descobri-lo e, eventualmente, lê-lo. E será o meu último livro publicado por um amigo que acabei de perder, o editor João Paulo Cotrim. Daqui a uns anos, se ainda cá estiver, acho que vou olhar para ele exactamente desta forma: o segundo livro que o Cotrim me publicou, o último, o derradeiro, um livro de “Micróbios”.
 
P-Qual a ideia que esteve na origem desta obra?
R- Para ser honesto, a ideia inicial era apenas coligir um conjunto de ficções breves, muito breves, publicadas em revistas, antologias e sítios dispersos pela internet. Depois apercebi-me que uma reunião do género seria porventura enriquecida se lhe conferisse alguma ordem, algum sentido. O meu esforço, quando publico um livro, é sempre o mesmo: oferecer sentido à quantidade, ao disperso, ao fragmentário. Os meus textos são peças de um puzzle espalhadas pelo chão, o meu trabalho é recolhê-las e encaixá-las até ficar com uma panorâmica que me faça algum sentido. E é no decorrer desse trabalho que me vou apercebendo de coincidências, de relações, de novas possibilidades de leitura dessa confusão de elementos que acabam por confluir para um mesmo propósito. A ideia foi organizar, a intenção é desorganizar, ou seja, confundir, isto é, através de uma certa organização desafiar ideias feitas e estimular o pensamento abrindo-o ao diverso. Começo sempre por organizar, acabo sempre a querer provocar desorganização. Posso dizer-lhe, por exemplo, sem pretender influenciar eventuais leitores, que pensei muito numa ética dispendiosa e numa estética do excesso como virtudes da criação artística, contra a avareza e os mealheiros de uma burguesia arrumadinha nos seus cofres assépticos. Tenho cada vez menos paciência para essa linguagem do depuramento, tudo muito certinho e estetizado, móveis sem pó, corpos sem manchas, o ideal deste tempo photoshópico. Entedia-me isso a que chamam clareza do discurso, superfícies polidas de textos anódinos e meramente bonitinhos. Prefiro as figuras deformadas do Francis Bacon, prefiro o próprio bacon servido ao pequeno-almoço com ovos mexidos. A vida é breve, efémera, eu sou apenas um entre 7,6 bilhões de habitantes neste planeta, que, na sua totalidade, são infinitamente menos do que os micróbios num corpo humano. Há pelo menos 39 trilhões de micróbios num corpo humano. E eles é que mandam. Portanto, é preciso gastar a vida, usá-la até ao limite suportável, como dizia o Al Berto, em vez de poupá-la numa domesticidade e imobilidade que só alimentam vaidades e indolência. O projecto deste livro é, pois, um projecto de dispêndio, o gosto pelo aleatório, pelo acaso, pelo acidental, pelo imprevisto. Onfray pensou estas coisas.
 
P-Contos e poemas eram o território dos seus livros anteriores. Agora decide publicar microficções. Como tem sido esta experiência por textos que, em alguns casos, não são mais do que um parágrafo e outras se aproximam do aforismo?
R-Os meus três primeiros livros, maus, são de poemas, maus. Comecei a publicar em 1997. Mas em 2006 publiquei um livro, “Estórias Domésticas & Outros Problemas” (OVNI), que já era de microficção, por assim dizer. E em 2007 publiquei um livro de ensaios, “O Meu Cinzeiro Azul” (Canto Escuro). Nada disto, porém, é planeado. Agradam-me obras inclassificáveis, que não conseguimos encaixar neste ou naquele género, muito mais do que as outras. As “Estórias Domésticas” são microficção porque o Miguel Real disse que eram. Pronto, está bem, que fique assim. Mas também podem ser poemas em prosa. Uns textos serão isso, outros serão outra coisa. Não estou muito preocupado com o assunto, com os rótulos, nem sequer perco tempo a pensar nisso. Mesmo estes textos que incluí em “Micróbios” têm origens muito diversas e resultam em fenómenos de escrita também eles distintos uns dos outros. Veja bem, há ali notícias corriqueiras, anedotas, apanhados de pastelaria, há um haiku, aforismos, sim, fragmentos, decalques daquilo a que Ramón Gómez de La Serna deu o nome de greguerías, há pequenas histórias, anedotas, fábulas, poemas em prosa, microdramas, há toda essa parafernália invisível, anónima, imperceptível, que compõe o mundo e o domina. São textos que surgem de um impulso. A gente vive, passa por coisas, e os textos surgem dessa relação com o mundo, ou vêm de um nada onírico, ou saltam das leituras que fazemos quase como comentários espontâneos. Gosto dessa liberdade. Porra, se não fosse essa liberdade, para quê escrever e publicar? E já que disse porra, deixe-me citar-lhe o anti-poeta Nicanor Parra: «o poeta é um caçador de palavras, não produz poesia, compõe poesia. Não é mais do que um ouvido atento que recolhe a sua poesia das bocas dos seus falantes. Por isso o poeta viaja pelo mundo com um noticiário na mão, cheio de toda esta poesia produzida pelo colectivo». A fauna microbiana é a sua fonte, o olho microscópico o seu instrumento. Isto já sou eu a dizer.
 
P-Qual o maior desafio criativo que enfrenta um autor para ser tão conciso, tão exacto e tão breve?
R- Não tenho fórmulas nem me arrogo no direito de as formular. Os desafios são sempre os mesmos: estar atento é o maior desafio, desconfiar dá uma trabalheira, criticar gera contradição e inimigos. Mas suponho que sejam esses os desafios. A concisão vem de uma exigência, cortar até ao limite suportável. Todo o escritor corta. Aquele que não corta, morrerá soterrado no que acumula. Como os irmãos Collyer. Reparemos, porém, no mundo em que vivemos, todo ele pede recortes. Ontem mesmo assisti em família a uma sátira extraordinária, “Don’t Look Up”. Que beleza de filme, este mundo em que vivemos ali caricaturado com corte e costura de uma precisão implacável. Estava a vê-lo e, não sei porquê, pensei ao mesmo tempo na artista Ani Liu, autora de arte biológica e multissensorial. Tem umas esculturas que cheiram a vagina, como os perfumes da Gwyneth Paltrow e da Erykah Badu. Isto não é um mundo de micróbios? O que pensar de alguém que lança no mercado um perfume com o cheiro da sua vagina? E de quem compra um frasquinho, o que pensar? Ouviu falar naquele tipo que pagou 107 mil euros pelo primeiro SMS da história? Incrível, não é? Num mundo em que tanta gente morre de fome, o Mediterrâneo está transformado em cemitério, há crianças a morrer de frio na fronteira da Bielorrússia com a Polónia, num mundo em que neste Natal passado foram oferecidos milhares de presentes fabricados com mão-de-obra escrava, numa Europa que odeia a China mas está economicamente dependente da mão-de-obra chinesa, de uma China que escraviza os uigures e inventou uma coisa a que se chamou capitalismo de estado… E o Jeff Bezos e o Elon Musk entretidos com foguetões… Sabe o que é mais chocante, é a maioria das pessoas estar-se a cagar para estas assimetrias. O pobre entretém-se com os luxos de Musk como um burro a olhar para um palácio. A classe média aburguesada não se choca com nada, dá umas esmolas para descargo de consciência e enfarda na medida das suas possibilidades. Isto não é um mundo de micróbios? Estarei a ser moralista? Estarei a ser radical? Será radical odiar o Mark Zuckerberg, aquilo que ele representa, e usar o Facebook?
 
P-Em Portugal, não são muitos os autores que publicam microficções. A que se deve esta situação?
R- Deve ter que ver com os interesses editoriais. Ainda assim, vão saindo umas coisas. Gosto muito do Augusto Baptista. Conhece? Quando o Dalton Trevisan ganhou o Camões convenci-me de que o interesse poderia vir a ser outro, mas enganei-me. Há um interesse muito residual pelo conto, mais ainda pela narrativa muito breve. Chamam-lhe artes menores. Depois publicam coisas maiores como o Pedro Chagas Freitas e o Raul Minh’alma. O mundo editorial português é uma confusão. Trabalhei 11 anos numa livraria, aprendi muito sobre isso. Se não fossem os pequenos e alguns médios editores isto estava tudo lixado, só se publicava pornochachada, romances pseudo-históricos e congéneres. Coisas sem interesse nenhum, lixo tóxico. O João Paulo Cotrim gostava muito deste registo da micronarrativa, talvez até pela sua forte ligação ao humor e à banda desenhada. Vou sentir muito a falta dele, mexia com esta merda.
 
P-Pensando no futuro: que está a escrever neste momento?
R- O meu próximo livro será uma peça de teatro. Chama-se “Na Cama com Ofélia” e sairá no princípio de 2022, pela Companhia das Ilhas, numa colecção em parceria com o Teatro da Rainha, onde a peça será levada à cena com encenação do mestre Fernando Mora Ramos. Estou entusiasmado, é uma experiência nova. Acabei de escrever um pequeno conjunto de poemas em prosa para um projecto multidisciplinar que decorreu em Rio Maior, minha cidade natal, no ano que passou. Será apresentado para o ano. Tenho um volume de poemas e um romance terminados, mas não sei o que fazer com eles. Estou a terminar uma novela satírica e um novo volume de contos, um pouco mais extensos do que os de “A Festa dos Caçadores” (Abysmo, 2018) e do “Call Center” (Companhia das Ilhas, 2.ª edição, 2019). Mas o trabalho de escrita prioritário no início do próximo ano será outra peça de teatro, que já comecei e recomecei diversas vezes. O mundo dá voltas, dificulta a fixação do texto. E suponho que seja tudo.

Sem comentários: