(aqui)
José Augusto Nunes Carneiro perguntou, eu respondi. Quem
tiver interesse, siga o link acima ou leia aqui:
P-O que representa no contexto da sua obra o livro
“Micróbios”?
P-Qual a ideia que esteve na origem desta obra?
P-Contos e poemas eram o território dos seus livros
anteriores. Agora decide publicar microficções. Como tem sido esta experiência
por textos que, em alguns casos, não são mais do que um parágrafo e outras se
aproximam do aforismo?
P-Qual o maior desafio criativo que enfrenta um autor
para ser tão conciso, tão exacto e tão breve?
P-Em Portugal, não são muitos os autores que publicam
microficções. A que se deve esta situação?
P-Pensando no futuro: que está a escrever neste momento?
R- É-me difícil responder-lhe a esta pergunta. Não penso nos meus livros, e vão
16, enquanto partes de uma obra. Não me propus construir nada quando comecei a
publicar. Em havendo um edifício a que chamar obra, então ele é como a
escultura invisível de Salvatore Garau. Mas vale muito menos. Portanto, este
livro representa mais um livro. Oculto, imperceptível, é preciso um microscópio
para descobri-lo e, eventualmente, lê-lo. E será o meu último livro publicado
por um amigo que acabei de perder, o editor João Paulo Cotrim. Daqui a uns
anos, se ainda cá estiver, acho que vou olhar para ele exactamente desta forma:
o segundo livro que o Cotrim me publicou, o último, o derradeiro, um livro de
“Micróbios”.
R- Para ser honesto, a ideia inicial era apenas coligir um conjunto de ficções
breves, muito breves, publicadas em revistas, antologias e sítios dispersos
pela internet. Depois apercebi-me que uma reunião do género seria porventura
enriquecida se lhe conferisse alguma ordem, algum sentido. O meu esforço,
quando publico um livro, é sempre o mesmo: oferecer sentido à quantidade, ao
disperso, ao fragmentário. Os meus textos são peças de um puzzle espalhadas
pelo chão, o meu trabalho é recolhê-las e encaixá-las até ficar com uma
panorâmica que me faça algum sentido. E é no decorrer desse trabalho que me vou
apercebendo de coincidências, de relações, de novas possibilidades de leitura
dessa confusão de elementos que acabam por confluir para um mesmo propósito. A ideia
foi organizar, a intenção é desorganizar, ou seja, confundir, isto é, através
de uma certa organização desafiar ideias feitas e estimular o pensamento
abrindo-o ao diverso. Começo sempre por organizar, acabo sempre a querer
provocar desorganização. Posso dizer-lhe, por exemplo, sem pretender
influenciar eventuais leitores, que pensei muito numa ética dispendiosa e numa
estética do excesso como virtudes da criação artística, contra a avareza e os
mealheiros de uma burguesia arrumadinha nos seus cofres assépticos. Tenho cada
vez menos paciência para essa linguagem do depuramento, tudo muito certinho e
estetizado, móveis sem pó, corpos sem manchas, o ideal deste tempo
photoshópico. Entedia-me isso a que chamam clareza do discurso, superfícies
polidas de textos anódinos e meramente bonitinhos. Prefiro as figuras
deformadas do Francis Bacon, prefiro o próprio bacon servido ao pequeno-almoço
com ovos mexidos. A vida é breve, efémera, eu sou apenas um entre 7,6 bilhões
de habitantes neste planeta, que, na sua totalidade, são infinitamente menos do
que os micróbios num corpo humano. Há pelo menos 39 trilhões de micróbios num
corpo humano. E eles é que mandam. Portanto, é preciso gastar a vida, usá-la
até ao limite suportável, como dizia o Al Berto, em vez de poupá-la numa
domesticidade e imobilidade que só alimentam vaidades e indolência. O projecto
deste livro é, pois, um projecto de dispêndio, o gosto pelo aleatório, pelo
acaso, pelo acidental, pelo imprevisto. Onfray pensou estas coisas.
R-Os meus três primeiros livros, maus, são de poemas, maus. Comecei a publicar
em 1997. Mas em 2006 publiquei um livro, “Estórias Domésticas & Outros
Problemas” (OVNI), que já era de microficção, por assim dizer. E em 2007
publiquei um livro de ensaios, “O Meu Cinzeiro Azul” (Canto Escuro). Nada disto,
porém, é planeado. Agradam-me obras inclassificáveis, que não conseguimos
encaixar neste ou naquele género, muito mais do que as outras. As “Estórias
Domésticas” são microficção porque o Miguel Real disse que eram. Pronto, está
bem, que fique assim. Mas também podem ser poemas em prosa. Uns textos serão
isso, outros serão outra coisa. Não estou muito preocupado com o assunto, com
os rótulos, nem sequer perco tempo a pensar nisso. Mesmo estes textos que
incluí em “Micróbios” têm origens muito diversas e resultam em fenómenos de
escrita também eles distintos uns dos outros. Veja bem, há ali notícias
corriqueiras, anedotas, apanhados de pastelaria, há um haiku, aforismos, sim,
fragmentos, decalques daquilo a que Ramón Gómez de La Serna deu o nome de
greguerías, há pequenas histórias, anedotas, fábulas, poemas em prosa,
microdramas, há toda essa parafernália invisível, anónima, imperceptível, que
compõe o mundo e o domina. São textos que surgem de um impulso. A gente vive,
passa por coisas, e os textos surgem dessa relação com o mundo, ou vêm de um
nada onírico, ou saltam das leituras que fazemos quase como comentários
espontâneos. Gosto dessa liberdade. Porra, se não fosse essa liberdade, para
quê escrever e publicar? E já que disse porra, deixe-me citar-lhe o anti-poeta
Nicanor Parra: «o poeta é um caçador de palavras, não produz poesia,
compõe poesia. Não é mais do que um ouvido atento que recolhe a sua poesia das
bocas dos seus falantes. Por isso o poeta viaja pelo mundo com um noticiário na
mão, cheio de toda esta poesia produzida pelo colectivo». A fauna microbiana é
a sua fonte, o olho microscópico o seu instrumento. Isto já sou eu a dizer.
R- Não tenho fórmulas nem me arrogo no direito de as formular. Os desafios são
sempre os mesmos: estar atento é o maior desafio, desconfiar dá uma
trabalheira, criticar gera contradição e inimigos. Mas suponho que sejam esses
os desafios. A concisão vem de uma exigência, cortar até ao limite suportável.
Todo o escritor corta. Aquele que não corta, morrerá soterrado no que acumula.
Como os irmãos Collyer. Reparemos, porém, no mundo em que vivemos, todo ele
pede recortes. Ontem mesmo assisti em família a uma sátira extraordinária,
“Don’t Look Up”. Que beleza de filme, este mundo em que vivemos ali
caricaturado com corte e costura de uma precisão implacável. Estava a vê-lo e,
não sei porquê, pensei ao mesmo tempo na artista Ani Liu, autora de arte
biológica e multissensorial. Tem umas esculturas que cheiram a vagina, como os
perfumes da Gwyneth Paltrow e da Erykah Badu. Isto não é um mundo de micróbios?
O que pensar de alguém que lança no mercado um perfume com o cheiro da sua
vagina? E de quem compra um frasquinho, o que pensar? Ouviu falar naquele tipo
que pagou 107 mil euros pelo primeiro SMS da história? Incrível, não é? Num
mundo em que tanta gente morre de fome, o Mediterrâneo está transformado em
cemitério, há crianças a morrer de frio na fronteira da Bielorrússia com a Polónia,
num mundo em que neste Natal passado foram oferecidos milhares de presentes
fabricados com mão-de-obra escrava, numa Europa que odeia a China mas está
economicamente dependente da mão-de-obra chinesa, de uma China que escraviza os
uigures e inventou uma coisa a que se chamou capitalismo de estado… E o Jeff
Bezos e o Elon Musk entretidos com foguetões… Sabe o que é mais chocante, é a
maioria das pessoas estar-se a cagar para estas assimetrias. O pobre
entretém-se com os luxos de Musk como um burro a olhar para um palácio. A
classe média aburguesada não se choca com nada, dá umas esmolas para descargo
de consciência e enfarda na medida das suas possibilidades. Isto não é um mundo
de micróbios? Estarei a ser moralista? Estarei a ser radical? Será radical odiar
o Mark Zuckerberg, aquilo que ele representa, e usar o Facebook?
R- Deve ter que ver com os interesses editoriais. Ainda assim, vão saindo umas
coisas. Gosto muito do Augusto Baptista. Conhece? Quando o Dalton Trevisan
ganhou o Camões convenci-me de que o interesse poderia vir a ser outro, mas
enganei-me. Há um interesse muito residual pelo conto, mais ainda pela
narrativa muito breve. Chamam-lhe artes menores. Depois publicam coisas maiores
como o Pedro Chagas Freitas e o Raul Minh’alma. O mundo editorial português é
uma confusão. Trabalhei 11 anos numa livraria, aprendi muito sobre isso. Se não
fossem os pequenos e alguns médios editores isto estava tudo lixado, só se
publicava pornochachada, romances pseudo-históricos e congéneres. Coisas sem
interesse nenhum, lixo tóxico. O João Paulo Cotrim gostava muito deste registo
da micronarrativa, talvez até pela sua forte ligação ao humor e à banda
desenhada. Vou sentir muito a falta dele, mexia com esta merda.
R- O meu próximo livro será uma peça de teatro. Chama-se “Na Cama com Ofélia” e
sairá no princípio de 2022, pela Companhia das Ilhas, numa colecção em parceria
com o Teatro da Rainha, onde a peça será levada à cena com encenação do mestre
Fernando Mora Ramos. Estou entusiasmado, é uma experiência nova. Acabei de
escrever um pequeno conjunto de poemas em prosa para um projecto
multidisciplinar que decorreu em Rio Maior, minha cidade natal, no ano que
passou. Será apresentado para o ano. Tenho um volume de poemas e um romance
terminados, mas não sei o que fazer com eles. Estou a terminar uma novela
satírica e um novo volume de contos, um pouco mais extensos do que os de “A
Festa dos Caçadores” (Abysmo, 2018) e do “Call Center” (Companhia das Ilhas,
2.ª edição, 2019). Mas o trabalho de escrita prioritário no início do próximo
ano será outra peça de teatro, que já comecei e recomecei diversas vezes. O
mundo dá voltas, dificulta a fixação do texto. E suponho que seja tudo.
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