segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

OBRAS DE MANUEL JOÃO GOMES -01

 

Um ano com a morte demasiado perto, ameaçado pelo medo, obscurecendo os dias, roubando noites, separando-nos por muros de vinil, afastando-nos uns dos outros, roubando-nos abraços e convívio, trazendo lágrimas à orla do olhar, levando-nos entes queridos, amigos, gente admirável, um ano assim tão sinistro, um ano assim tão fúnebre, não pode terminar como se entre o fim no início e a despedida no final não tivessem acontecido risos e tudo tivesse sido apenas aquele choro para dentro que entrava a garganta, aperta o peito, impede a respiração. Lá no meio da desgraça e no caos da ruína, os livros foram assomando como mortos escapando às valas onde pretendem sepultá-los. Terminemos, pois, em alegria, a de ver recuperados os textos ficcionais de Manuel João Gomes (1948-2007) e anunciados outros, de uma vasta obra dispersa, para volumes em preparação. O primeiro das Obras agora publicadas pela Companhia das Ilhas (Novembro de 2021) reúne Almanaque dos espelhos (&etc, 1980), Os Segredos da Jacinta (&etc, 1982) e Brinquedo electrónico essencial (Black Sun Ediotres, 1985), tríptico marcado por uma ironia desbragada que levou Jorge Pereirinha Pires, no prólogo, a atribuir ao autor o epíteto de «sátiro na cidade».
   Manuel João Gomes foi, antes de mais, um extraordinário tradutor a quem muito devemos, assim como, provavelmente, o último crítico de teatro português verdadeiramente empenhado em mostrar o país criativo para lá da redoma lisboeta. Nascido em Coimbra, fixou-se na capital quando Maio aqueceu as ruas de Paris insuflando parca esperança numa primavera portuguesa que era só tesão da manhã. Com os editores Fernando Ribeiro de Mello, nas Edições Afrodite, e com Vitor Silva Tavares, no e na &etc, deu asas a uma erudição prodigiosa, traduzindo e introduzindo textos marcantes vindos à estampa, em língua portuguesa e pela primeira vez, graças ao seu labor oficinal. Foi companheiro de Luiza Neto Jorge, com quem teve um filho.
   O que dizer do engenho repartido pelos três livros agora coligidos? Em Almanaque dos Espelhos, a sabedoria do leitor ávido distribui-se por dezoito prosas breves em que o tema do reflexo é esmiuçado a partir de conversações com inúmeras referências, num jogo que nos coloca diante do texto sem sabermos ao certo quanto nele há de especulativo: «especular é saber usar o espelho (speculum)» (p. 30). O divertimento reside na sabotagem exercida sobre a natureza do texto, ele mesmo reflexo sobre o qual nos debruçamos na expectativa de nos descobrirmos. O reflexo reflecte-me? Somos o nosso reflexo? Como discernir o aparente do ser com o qual o aparente se aparenta? A própria criação artística, enquanto reprodução de aparências, transfigurações, reflexos, é aqui colocada em causa num labirinto onde tanto Alice, a do outro lado do espelho, como Artaud ou Nerval e tantos outros, circulam enquanto exemplos ao serviço de uma ironização do lirismo empenhada em desfazer o eu que se intromete na prosa: «Aos poetas lusitanos, se fosse menos tímido, / agradava-me oferecer-lhes um espelho, um quase nada, / um espelho de bolso com o emblema (no anverso) do Benfica: / assim evitaria que andassem sempre à procura de um poço, de um charco / ou de um vidro de eléctrico para verem as rugas da Saudade Eterna, / sua Musa» (pp. 53-54).
    Já estávamos nos anos de 1980, mas o discurso insistia na acutilância que caracterizou os operários de navios de espelhos encalhados na bacia do Tejo. O registo mantém-se em Os Segredos de Jacinta, sátira tão hilariante quão heterodoxa publicada aquando da vinda a Portugal do Papa João Paulo II. Ainda que o objecto de escárnio seja outro, a introdução mantém-se fiel a uma crítica em contexto estritamente literário que, para mal dos nossos pecados, mantém a actualidade: «Quanto mais mole e mais cadaveroso, hoje, melhor se vende!» (p. 72). A Jacinta desta novela escreve um diário, vive revoltada com a família, fuma charros com a Lúcia e com o Francisco, quer fugir de casa, tem alucinações com um Peixomem e mais não dizemos. Texto delirante e alucinado, o que para nós é elogio, capaz de arrancar enormes gargalhadas ao leitor que se permita embalar por um Deus a quem cresce o nariz como ao Pinóquio. O religioso e o sexual cruzam-se nesta prosa, tal como noutras ditas mais sérias, até descambar numa axiomática declarada e voluntariamente anticlerical: «o fedor nauseabundo que se espalha pelo mundo quando passa João Paulo 2.º» (p. 103).
   Por fim, o mais marcadamente surrealista destes textos, que parte, paradoxalmente, de um facto nada onírico: a queda de Alfredo Rampi, dito Alfreddino, num poço artesiano em Vermicino, no ano de 1981, e sucessivas tentativas falhadas de resgate. É um texto estranhamente belo, este Brinquedo electrónico essencial, por nele se equilibrarem tão dificilmente um tom marcadamente elegíaco e a mais extasiada imaginação. Parece vindo das profundezas de um inconsciente, seja lá o que isso for, onde se misturam fragmentos quiméricos, mais ou menos identificáveis, com visões dispersas da realidade: «Que mérito há em se ficar no fundo do poço, quando se pode ir mais além, descer aos poços dos poços» (p. 115). É precisamente o que nos propõe este texto, uma descida ao poço dos poços, uma viagem ao centro da Terra pela mão de um Alfredo em queda contínua, mergulhando num fim do mundo que, por certo, nos traria à hipermediatização do infortúnio e do sofrimento. O túnel pelo qual nos transporta traz-nos a este nosso tempo, um tempo para lá do tempo, este tempo registado sem descontinuidade, sem suspensões ou interrupções, e por isso modelador de uma insensibilidade e de uma indolência cada vez mais patentes nos comportamentos humanos. Porque ninguém aguenta estar permanentemente sujeito à dor sem se tornar indiferente à dor, é um mecanismo de defesa natural, uma habituação como a do corpo a uma qualquer droga que, depois, vai exigindo o aumento da dose até à sobredose fatal: «Se acreditas no poder da literatura, Alfredo, não clames pelo Senhor, que o Senhor não ouvirá a tua voz que se ergue do Lago profundo, dá antes a mão à minha Alegoria» (p. 137).   

Sem comentários: