O Palhinhas & Ca.
colecção periódicos locais/mensais
número 76
directório colectivo: José de Matos-Cruz, Joaquim Jordão, António Viana, Álvaro Biscaia
23 de Dezembro de 2021
colecção periódicos locais/mensais
número 76
directório colectivo: José de Matos-Cruz, Joaquim Jordão, António Viana, Álvaro Biscaia
23 de Dezembro de 2021
HÁ SEMPRE ALTERNATIVA
A nação vai a votos. São coisas que acontecem em democracia. Os
comentadores de serviço, nos quais incluímos o actual Presidente da República —
ele há vícios dificílimos de ultrapassar —, ora apelaram ao bom senso, ora
falaram em eleições dispensáveis, dispensando-se eles mesmos do mais básico bom
senso. Marcelo foi igual a si mesmo. Ainda o orçamento não havia sido votado,
já ele ameaçava com a dissolução da Assembleia da República e com a convocação
de eleições antecipadas. Não me recordo de assistir a algo semelhante, um
Presidente da República a condicionar a votação de um orçamento com ameaças e,
talvez mais grave, a enganar os portugueses com a ideia de que, em sendo o
orçamento chumbado, não haveria outra solução senão a dissolução do Parlamento
e a convocação de eleições antecipadas. Havia. A apresentação de um novo
orçamento era uma delas.
A necessidade de clarificação implicava ir a votos, disse o PR. E em
conformidade lá encontrou uma data que permitisse aos partidos da direita,
todos esfrangalhados, rearranjarem-se para poderem apresentar-se com a cara
menos turva. Enquanto tal, o primeiro-ministro António Costa fez o que melhor
sabe fazer: adoptou uma pose. Desta feita inspirou-se na obra de Bruno Amadio,
o pintor italiano que nas décadas de 1970 e 1980 se fartou de pintar quadros
com criancinhas choronas. Toda a gente conhece. O quadro do menino chorão é deveras
popular entre os portugueses, que são gente dada ao fado e têm bom coração.
Quem é que não se comove com o menino chorão? Quem é que não se comove, já
agora, de cada vez que a ministra da saúde Marta Temido solta uma lágrima dando
provas da sua humanidade? Tadinha. Apetece fazer festinhas, dar abraços,
consolar.
São simples as narrativas colocadas em circulação. A primeira diz-nos
que a esquerda foi muito má e não quis ceder nas negociações com o Governo, a
segunda diz-nos que o Governo quis ir a votos porque lhe cheira a maioria
absoluta. Depois de atravessar as autárquicas acenando com os milhões do Plano
de Recuperação e Resiliência, António Costa apresentou um orçamento onde nem
recuperação nem resiliência. Esta última palavra, de resto usada por Marta
Temido a propósito da contratação de profissionais de saúde, pode ser traduzida
pelo famigerado “ai aguenta, aguenta” proferido em 2013 por um banqueiro quando
interrogado se o país suportaria mais austeridade. Entre o “aguenta, aguenta”
de Fernando Ulrich e a resiliência de António Costa há uma mera diferença de
tom.
Uma prova clarificadora, como Marcelo gosta, de que a diferença é
meramente de tom, está na resposta do Governo à proposta do PCP para aumentar o
salário mínimo para esse valor absolutamente insuportável de 850€. Como a
esquerda é muito má, faz estas propostas horríveis e inexequíveis que acabam
chumbadas com os votos contra do PS, do PSD, do CDS, da IL e do Chega. O
Governo do menino chorão prefere aumentar o salário mínimo em 40€, para uns
miseráveis 705€, compensando os empregadores com 112€ por cada trabalhador que
receba os 705€ euros brutos mensais. Assim temos que pelo aumento de um
empregado o empregador receberá quase o triplo desse aumento. Caramba, a
esquerda portuguesa é pobre e mal-agradecida.
Conta-se que há muitos anos, Maria Antonieta, confrontada com a fome do
povo, terá sugerido que este comesse brioches. A ignorância e a ausência de
sensibilidade social de Maria Antonieta tiveram os seus decalques na mais
recente governação portuguesa. Graça Fonseca, confrontada com o desespero dos
profissionais do sector cultural, convidou os senhores jornalistas para um
«drink de fim de tarde». 0,25% para a cultura, percentagem ignominiosa, foi a
resposta do orçamento chumbado para fazer face a tal desespero. O próprio
António Costa, ao considerar que a final da Champions em Portugal, apresentada
com uma pompa e em circunstâncias que nos fizeram sentir vergonha alheia, era
«um prémio para os profissionais de saúde», deu um atlético contributo para a
causa. E que dizer de Eduardo Cabrita, o passageiro de uma viatura que foi
vítima de um acidente no qual se viu envolvida? É a cereja no topo de um bolo
amargo, não é?
Não sejamos nós também insensíveis. É verdade que os dois últimos anos
foram de uma exigência tremenda, por razões sobejamente conhecidas e discutidas,
mas a pandemia não pode servir de desculpa para tudo e mais alguma coisa. O
país não parou com a pandemia. O que esta fez foi tornar visíveis as escoriações
de uma sociedade assimétrica e injusta, com uma deficientíssima distribuição da
riqueza, com serviços públicos fragilizados por décadas de políticas negligentes,
mais empenhadas em servir interesses privados do que em dar resposta ao
interesse público. Andarmos descansados da vida porque já só morrem 10, 15 ou
20 pessoas por dia com covid é péssimo sinal da teia perversa em que nos
deixámos enredar. Oferecer a António Costa a maioria absoluta com que ele sonha,
para distribuir prémios de resiliência pelos mesmos de sempre, será erro
crasso, tão crasso quanto permitir que a direita regresse ao poder trazendo
atrelados a paranormalidade e o ultranacionalismo autoritário do populismo. Não
há alternativa? Há sempre alternativa. Há 6 anos também diziam que não havia
alternativa. E no entanto.
Henrique Manuel
Bento Fialho
Caldas da
Rainha, 13/12/2021
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