quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

DOLPHIN DANCE (1965)

 


Começou a morrer pelos pés, tal uma árvore começa a morrer pela raiz. No seu caso, porém, julgo ter sido para desequilibrá-lo no decorrer da caminhada que a morte o atacou pelos pés. Comunidades de fungos instalaram-se entre os dedos com incansável atitude expansionista, tomando conta das unhas como em certos territórios se perpetuam conflitos. Ocupadas, as unhas resistem como podem. Podem pouco. Quando menos se espera, as micoses chegam ao cu deixando-o esgarçado a ponto de não haver como destrinçar refegos de pólipos. Como limpar um cu feito em estalactites? - questionou-se. E nisto as virilhas em sangue clamando socorro, o corpo num estado geral de putrefacção da cintura para baixo. Nem o caralho foi deixado em paz. Tenho-o a cair aos bocados, disse, como um leproso. Ficaram a olhar para ele, à hora de jantar, à mesa da sala onde a família estava reunida para mais uma consoada, que foi quando o revelou, colocando os cotovelos sobre a mesa, como tantas vezes fazia, passando as mãos pela testa e deslizando-as até à nuca para terminar a apertar o pescoço. Mas dessa vez não chegou ao pescoço. A meio do percurso descobriu um quisto no cocuruto. Estou fodido, agora mais esta. Será maligno? Não sinto dores senão fantasma, aquelas dores que vêm de dentro para fora e afectam humores. Os olhos sempre turvos, a vista cada vez mais precária, a pedir reforma antecipada ou, pelo menos, subsídio de férias. E o tipo ao espelho, apalpando-se dos pés à cabeça para ver se descobria caroços, hematomas, quistos, pólipos. Apenas cicatrizes, nódoas negras, estrias, manchas, celulite, sinais porventura cancerígenos, o tempo a comer-lhe o corpo e a barriga cada vez mais flácida e preeminente. As entradas na testa, espiando o crânio. E se o quisto fica visível, o que será de mim? O que me vale é ainda poder conduzir. Meteu-se no carro e foi espreitar os golfinhos no Sado. 

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