“Na Cama com Ofélia” (Companhia das Ilhas, Fevereiro de 2022), o livro,
já está disponível através do sítio da Companhia das Ilhas e no Teatro da
Rainha. A peça estreia dia 17 de Fevereiro, com encenação de Fernando Mora
Ramos e interpretações de Marta Taveira, António Parra, Fábio Costa e Ricardo
Soares. O Fernando também assina o prefácio do livro, um ensaio generoso intitulado
«Um amor em diminutivo(s) num país em diminutivo». Diz, ao segundo parágrafo,
que «estamos em pleno “drama onírico”, mais perto de Pirandello que de Pessoa
ou Beckett, se nos vier à cabeça o seu "Sonho, ou Talvez Não". E também de
Strindberg. Mas aí o que importa é manter essa ilusão como drama, isto é, a
ilusão que se estabelece entre o que é verdadeiro, real e o que é ilusório, sonho,
daí o talvez.»
Desconhecia a peça de Pirandello, que me apressei a ler na versão incluída em “Máscaras Nuas, Uma Selecção” (INCM, Junho 2021). É uma peça para três personagens. Tal como A Jovem Senhora, também Ofélia, no início, se encontra deitada numa cama no centro de um quarto. Abrem-se hipóteses sobre a natureza do cenário, já que o quarto talvez não seja quarto. E não é. Na verdade, trata-se de palco, cenário a que chamamos quarto por nos parecer quarto. O jogo começa precisamente aí, nessa provocação feita ao espectador. Ele que defina o que diante de si sucede. O quarto pode ser mente, lugar inacessível em que todas as configurações são possíveis. Quarto? Bosque?
A ambiguidade, em Ofélia, é ainda sublinhada pelo envio cénico para o quadro de John Everett Millais, representação da Ophelia de Shakespeare. Não vem já daí essa dimensão indefinida das personagens? O que é o fantasma? Ilusão ou realidade? Hamlet, que no início diz à Rainha não reconhecer aparências, ouvirá dela dizer, mais tarde, que as suas visões são produto do cérebro: «essa aparição incorpórea é uma das criações fantásticas do teu delírio.» Quando escreveu “Autopsicografia”, Pessoa, que conhecia bem Hamlet, sabia não haver dor mais dificilmente tratável do que a dor fantasma. O fantasma de Hamlet era real como o leito em que Ofélia se afogou, uma realidade que não passa com lenitivos, carece de outros tratamentos. Talvez toda a criação artística advenha, precisamente, desse estado em que o poeta «chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente.»
Também em “Na Cama com Ofélia” a luz é a luz de sonho. E se na peça de Pirandello, a dada altura, uma mão sai de sob o canapé que serve de cama, debaixo da cama de Ofélia saem três criaturas recitando versos de Álvaro de Campos. Ofélia referir-se-á ao momento como um sonho muito engraçado: «calcule que sonhei que estava a sonhar, e que três entidades, cuja natureza não foi possível identificar, saltavam debaixo da minha cama cantando alegremente aqueles versos horríveis do Senhor Engenheiro.» As coincidências com Pirandello terminam aqui. A Jovem Senhora interagirá com O Homem de Fraque em dois planos, o onírico e o real. Também aparece Um Criado de Quarto, que não fala.
Ofélia não interage com as criaturas senão através de projecções e de associações, tudo se joga no domínio da ilusão: Ofélia que sonha, Ofélia sonâmbula, Ofélia vidente. Para quem fala ela quando fala? Fala consigo mesma, na esperança de que alguém a ouça. Na esperança de se ouvir a si mesma para, como Ícaro, construir asas que a libertem do labirinto em que está encerrada. Talvez com penas de íbis e mel das abelhas que lhe aparecem em sonhos. As criaturas andam à sua volta, contemplando-a, perscrutando-a, indagando-se sobre o que possa ser aquele corpo, tentando perceber o que o anima sem se darem conta de que é animado pelo que lhes falta, a capacidade de excederem a sua própria condição. As criaturas são marionetas do pensamento, heterónimos assexuados cujas acções são determinadas pela ambição de quem os pensa. Ela não, ela pode superar a sua condição idealista e utópica, fantasiosa, quimérica, indo ao encontro da realidade. «Não, não, eu quero ser sensata.», diz A Jovem Senhora na peça de Pirandello. «Um nome não é apenas uma palavra. Tenho um desejo demente de não haver palavras em mim.» — diz Ofélia, pouco antes do final.
Desconhecia a peça de Pirandello, que me apressei a ler na versão incluída em “Máscaras Nuas, Uma Selecção” (INCM, Junho 2021). É uma peça para três personagens. Tal como A Jovem Senhora, também Ofélia, no início, se encontra deitada numa cama no centro de um quarto. Abrem-se hipóteses sobre a natureza do cenário, já que o quarto talvez não seja quarto. E não é. Na verdade, trata-se de palco, cenário a que chamamos quarto por nos parecer quarto. O jogo começa precisamente aí, nessa provocação feita ao espectador. Ele que defina o que diante de si sucede. O quarto pode ser mente, lugar inacessível em que todas as configurações são possíveis. Quarto? Bosque?
A ambiguidade, em Ofélia, é ainda sublinhada pelo envio cénico para o quadro de John Everett Millais, representação da Ophelia de Shakespeare. Não vem já daí essa dimensão indefinida das personagens? O que é o fantasma? Ilusão ou realidade? Hamlet, que no início diz à Rainha não reconhecer aparências, ouvirá dela dizer, mais tarde, que as suas visões são produto do cérebro: «essa aparição incorpórea é uma das criações fantásticas do teu delírio.» Quando escreveu “Autopsicografia”, Pessoa, que conhecia bem Hamlet, sabia não haver dor mais dificilmente tratável do que a dor fantasma. O fantasma de Hamlet era real como o leito em que Ofélia se afogou, uma realidade que não passa com lenitivos, carece de outros tratamentos. Talvez toda a criação artística advenha, precisamente, desse estado em que o poeta «chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente.»
Também em “Na Cama com Ofélia” a luz é a luz de sonho. E se na peça de Pirandello, a dada altura, uma mão sai de sob o canapé que serve de cama, debaixo da cama de Ofélia saem três criaturas recitando versos de Álvaro de Campos. Ofélia referir-se-á ao momento como um sonho muito engraçado: «calcule que sonhei que estava a sonhar, e que três entidades, cuja natureza não foi possível identificar, saltavam debaixo da minha cama cantando alegremente aqueles versos horríveis do Senhor Engenheiro.» As coincidências com Pirandello terminam aqui. A Jovem Senhora interagirá com O Homem de Fraque em dois planos, o onírico e o real. Também aparece Um Criado de Quarto, que não fala.
Ofélia não interage com as criaturas senão através de projecções e de associações, tudo se joga no domínio da ilusão: Ofélia que sonha, Ofélia sonâmbula, Ofélia vidente. Para quem fala ela quando fala? Fala consigo mesma, na esperança de que alguém a ouça. Na esperança de se ouvir a si mesma para, como Ícaro, construir asas que a libertem do labirinto em que está encerrada. Talvez com penas de íbis e mel das abelhas que lhe aparecem em sonhos. As criaturas andam à sua volta, contemplando-a, perscrutando-a, indagando-se sobre o que possa ser aquele corpo, tentando perceber o que o anima sem se darem conta de que é animado pelo que lhes falta, a capacidade de excederem a sua própria condição. As criaturas são marionetas do pensamento, heterónimos assexuados cujas acções são determinadas pela ambição de quem os pensa. Ela não, ela pode superar a sua condição idealista e utópica, fantasiosa, quimérica, indo ao encontro da realidade. «Não, não, eu quero ser sensata.», diz A Jovem Senhora na peça de Pirandello. «Um nome não é apenas uma palavra. Tenho um desejo demente de não haver palavras em mim.» — diz Ofélia, pouco antes do final.
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