Por todo o lado cancelam os russos,
sopranos e maestros, atletas paralímpicos, atletas em geral. O cinema russo
está sob fogo e o Bolshoi transformou-se num teatro de guerra. Que culpa tem o
circo russo dos ursos russos? Temo o pior, não sei o que fazer com os meus
russos. Escondo-os debaixo do chão que me carrega. Tarkovski, Eisenstein,
Vertov, poderei continuar a vê-los sem sentir peso na consciência? Terão os círculos
de Kandinsky deixado de ser circulares? Chagall, nascido algures na Bielorrússia,
será agora considerado um colaboracionista? Numa universidade querem proibir
Dostoiévski, que aqui em casa repousa ao lado de Tchekhov. Será desta que vão
finalmente decidir-se pela nacionalidade de Gogol? Poderei continuar a lê-lo se
decidirem que é ucraniano, queiram os deuses que assim seja. Estou apreensivo, Daniil Kharms. Era para ir a
um concerto dos 10 000 Russos, que por acaso são portugueses, e fiquei em casa
temendo o pior. E Demis Roussos, posso ouvir sem correr o risco de acabar mal
interpretado? Ele há com cada maluco. Saberão que nasceu no Egipto e morreu na
Grécia, aqueles que agora banem gatos russos de competições internacionais? O
mundo está perigoso, todas as cautelas são poucas. Tenho aqui ao lado uma
antologia de poetas soviéticos, acho que vou acender uma fogueira com ela. Fico
com o Ossip Mandelstam, que nasceu na Polónia e morreu num gulag, fico com a
Anna Akhmátova, que era de Odessa, na Ucrânia, talvez possam continuar a ser
simplesmente poetas. Ninguém levará a mal, creio. Mas que fazer com Maiakovski,
que era de uma pequena cidade da Geórgia? Poderei sentar-me à mesa com ele a
beber um café e a ouvir Motorama, que por acaso são russos mas soam a Joy
Division? Que grande lotaria é a vida por estes dias. Vou comprar uma bandeira
do partido e pintá-la de azul e amarelo. Espero que não me matem.
terça-feira, 8 de março de 2022
LOTTERY (2015)
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1 comentário:
Que fazer?
«Tenho andado com um cansaço enorme, a beber gin que nem um dromedário que goste de gin, a ter que ir às compras e outras chatices.»
Dizia o Mário-Henrique Leiria às compras, em Carcavelos, com um gorro russo na cabeça.
«… encostou-se no parapeito da janela aberta e ficou a olhar o entardecer discreto e melancólico.»
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