Contei há dias a uma plateia de jovens
estudantes que quando entrei para a universidade, em 1992, ainda entreguei os
primeiros trabalhos escritos à mão. Só no segundo ano comecei a batê-los à
máquina. Lá mais para o fim, tive o meu primeiro computador com disquetes e uma
impressora que me permitia entregar os trabalhos já com outro aspecto a pós-modernidade.
Os primeiros 20 anos do século XXI foram de transformações radicais em todas as
dimensões da vida humana. Começa a ser redundante referi-lo. O processo de
massificação da Internet a partir da década de 1990 veio incrementar e acelerar
essas mudanças, sendo hoje parte integrante das nossas vidas com consequências
futuras absolutamente imprevisíveis.
Começam a surgir estudos inquietantes acerca dos efeitos das novas tecnologias na educação das gerações futuras, como esse título eloquente de Michel Desmurget: A Fábrica de Cretinos Digitais (Contraponto, Outubro de 2021). Seja a nossa posição mais céptica ou mais optimista, inquestionável parece ser a ideia de que algo está a mudar radicalmente as relações entre os seres humanos, o comércio e a economia internacionais, a comunicação global. A globalização de que tanto se falava após a queda do muro de Berlim, seguida do entusiasmo pela clonagem com o nascimento da ovelha Dolly (1996), justificou o aparecimento de um conjunto de livros a colocarem em causa o nosso futuro pós-humano (a expressão é de Francis Fukuyama, o mesmo que havia precipitadamente previsto O Fim da História e o Último Homem).
Aqui chegados, é natural que toda uma geração de empenhados activistas das causas ecológica e libertária, saídos do Maio de 68 ou entusiastas de outros movimentos, sejam assaltados por «sensações de tédio, desespero e raiva impotente». A confissão é de Peter Lamborn Wilson (n. 1945) no artigo O Novo Niilismo (2015), publicado pela editora Barco Bêbado em Fevereiro passado com tradução portuguesa de Joana Jacinto e um ensaio visual de Vasco Barata. O desapontamento, a que eu acrescentaria a frustração, sentido pelo autor de Utopias Piratas (Deriva, Fevereiro de 2009) tem na sua origem a constatação de um falhanço de todas as forças que se opuseram ao capitalismo triunfante e à tecnopatocracia enquanto consequência mais directa do seu triunfo. O conceito denuncia na contemporaneidade, ao mesmo tempo e de forma interligada, a influência das tecnologias na produção de uma sociedade patológica: «O futuro É isto — que tal, estás a gostar? A Vida nos Escombros: nada mal para a burguesia, os criados leais daquele Um Por Cento. Escombros com ar condicionado!» (p. 9)
A notícia deve ser lembrada à exaustão: «De 1995 a 2021, o top 1% dos mais ricos ao redor do mundo deteve 38% do dinheiro global, enquanto os 50% mais pobres dividem apenas 2% dessa fortuna. Os dados são do estudo Desigualdade Mundial 2022, produzido pelo laboratório francês Thomas Piketty.» O poder incalculável de oligarcas como Jeff Bezos ou Elon Musk é um sinal eloquente do agravamento das assimetrias e desigualdades num mundo indiferente a 17 milhões de pessoas com fome aguda num país como o Iémen, bombardeado pelos amigos do mundo ocidental: a Arábia Saudita, que num só dia executa 81 prisioneiros sem apelo nem agravo. A hipocrisia reinante não é de agora e impele Peter Lamborn Wilson a questionar-se sobre o curso da história. Será que vivemos melhor do que no passado? Não será uma falácia a ideia de progresso e de evolução que a toda a hora nos querem vender? O diagnóstico fala por si:
«Hoje existe, pelo menos, dez
vezes mais dinheiro do que é necessário para comprar o mundo inteiro —
e, no entanto, espécies estão a desaparecer, o próprio espaço está a
desaparecer, as calotas glaciares estão a derreter, o ar e a água ficaram
tóxicos, a cultura ficou tóxica, a paisagem foi sacrificada a troco da
fracturação hidráulica e de mega-centros comerciais, do fascismo do ruído, etc.
etc. Mas a Ciência há-de curar todos os males que a Ciência criou —
no Futuro (no “longo prazo”, em que todos estaremos mortos, para citar Lord
Keynes); no entretanto, continuaremos a consumir o mundo e a cagá-lo como lixo —
porque é conveniente e eficiente e lucrativo fazer assim, e porque gostamos disso» (p. 11).
Que tem o autor de Zona Autónoma Temporária (frenesi, 2000), aka Hakim Bey, a propor
contra este desespero? Uma «alteração sísmica na consciência humana» (p. 12).
Desejável, sem dúvida. Mas realizável? O problema das teses defendidas por
autores como Peter Lamborn Wilson, por muito que simpatizemos com elas, é o de não resistirem à tentação de supor que uma solução para a
humanidade é o homem deixar de ser homem, esperando que o ser humano se negue a
si mesmo para poder renascer sob uma forma animal que não é a sua. Ora, o homem
é o que é, uma besta apostada na domesticação dos seus próprios instintos mortais
através da educação para o amor, para a tolerância, para a solidariedade, para o
respeito pela liberdade individual, não sendo de todo improvável que quem mais
se diz empenhado na defesa de tais valores acabe preso na teia dos seus
próprios instintos egocentristas e de uma cultura etnocêntrica. A
barbárie e a crueldade não são um exclusivo de ninguém, tal como o bom senso, e
ao contrário da riqueza, têm uma distribuição muito simétrica no mundo.
É todavia curioso ver um anarquista admitir certa forma de Estado como a mais humana entre todas as que alguma vez surgiram «do sorvedouro podre da Civilização», para o caso algo na «linha do monarco-socialismo escandinavo dos anos 1970» (p. 15). Já não é mau, para quem se diz «demasiado deprimido». Ainda assim, prefiro as alternativas ao «desespero suicida» aventadas em desespero de causa: o Escapismo Passivo, uma espécie de eremitismo à maneira dos anacoretas do deserto (gosto, desde que haja água disponível com que matar a sede e lavar as partes); o Escapismo Activo, como o dessas comunidades colectivistas inspiradas pelos hippies das décadas de 1960 e 1970, mais fixas ou mais nómadas, recolhidas num mundo rural onde seja possível darmo-nos ao luxo de custear a nossa amostra de liberdade (vide página 19); a Vingança, talvez a mais polémica de todas as alternativas: «Outrora defendi o “Terrorismo Poético” e não a violência efectiva, porque a minha ideia era a de que a arte pudesse ser utilizada como uma arma. Agora já não estou certo de que isso seja possível. Mas talvez as armas possam ser utilizadas como arte» (p. 22). Tenho as mais sinceras dúvidas.
Leio sempre Peter Lamborn Wilson com imenso entusiasmo, revendo-me num certo sentimento de impotência e de esgotamento face aos horrores do mundo e à hipocrisia reinante. A crítica aos efeitos das tecnologias é-me especialmente cara, assim como o desespero pela afirmação da liberdade em contextos sociais opressivos e até humilhantes: da família ao Estado, passando pela escola/academia, é só escolher. O diagnóstico esboçado é certeiro, as soluções deixam-nos numa encruzilhada labiríntica cujo mérito é poder levar-nos a reconhecer as contradições em que vamos cumprindo a nossa existência. Ele mesmo o reconhece no que toca ao uso da violência em matéria de vingança. O Novo Niilismo, de que o autor afirma divergir tanto quanto concordar, pode, no entanto, equivaler a um «desespero criativo» do qual retiramos algo de verdadeiramente positivo: clarividência quanto ao estado do mundo, estímulo à procura de soluções individuais que permitam resistir e sobreviver ao sufoco diagnosticado. Neste sentido, a proposta das «zonas autónomas temporárias» mantém-se válida, não apenas pelo que simplesmente significa, mas por redimensionar o fim último das nossas acções deslocando-nos de ambições universais condenadas ao fracasso para um investimento mais produtivo no nosso pequeno mundo. Aquele que começa na nossa própria morada.
Começam a surgir estudos inquietantes acerca dos efeitos das novas tecnologias na educação das gerações futuras, como esse título eloquente de Michel Desmurget: A Fábrica de Cretinos Digitais (Contraponto, Outubro de 2021). Seja a nossa posição mais céptica ou mais optimista, inquestionável parece ser a ideia de que algo está a mudar radicalmente as relações entre os seres humanos, o comércio e a economia internacionais, a comunicação global. A globalização de que tanto se falava após a queda do muro de Berlim, seguida do entusiasmo pela clonagem com o nascimento da ovelha Dolly (1996), justificou o aparecimento de um conjunto de livros a colocarem em causa o nosso futuro pós-humano (a expressão é de Francis Fukuyama, o mesmo que havia precipitadamente previsto O Fim da História e o Último Homem).
Aqui chegados, é natural que toda uma geração de empenhados activistas das causas ecológica e libertária, saídos do Maio de 68 ou entusiastas de outros movimentos, sejam assaltados por «sensações de tédio, desespero e raiva impotente». A confissão é de Peter Lamborn Wilson (n. 1945) no artigo O Novo Niilismo (2015), publicado pela editora Barco Bêbado em Fevereiro passado com tradução portuguesa de Joana Jacinto e um ensaio visual de Vasco Barata. O desapontamento, a que eu acrescentaria a frustração, sentido pelo autor de Utopias Piratas (Deriva, Fevereiro de 2009) tem na sua origem a constatação de um falhanço de todas as forças que se opuseram ao capitalismo triunfante e à tecnopatocracia enquanto consequência mais directa do seu triunfo. O conceito denuncia na contemporaneidade, ao mesmo tempo e de forma interligada, a influência das tecnologias na produção de uma sociedade patológica: «O futuro É isto — que tal, estás a gostar? A Vida nos Escombros: nada mal para a burguesia, os criados leais daquele Um Por Cento. Escombros com ar condicionado!» (p. 9)
A notícia deve ser lembrada à exaustão: «De 1995 a 2021, o top 1% dos mais ricos ao redor do mundo deteve 38% do dinheiro global, enquanto os 50% mais pobres dividem apenas 2% dessa fortuna. Os dados são do estudo Desigualdade Mundial 2022, produzido pelo laboratório francês Thomas Piketty.» O poder incalculável de oligarcas como Jeff Bezos ou Elon Musk é um sinal eloquente do agravamento das assimetrias e desigualdades num mundo indiferente a 17 milhões de pessoas com fome aguda num país como o Iémen, bombardeado pelos amigos do mundo ocidental: a Arábia Saudita, que num só dia executa 81 prisioneiros sem apelo nem agravo. A hipocrisia reinante não é de agora e impele Peter Lamborn Wilson a questionar-se sobre o curso da história. Será que vivemos melhor do que no passado? Não será uma falácia a ideia de progresso e de evolução que a toda a hora nos querem vender? O diagnóstico fala por si:
É todavia curioso ver um anarquista admitir certa forma de Estado como a mais humana entre todas as que alguma vez surgiram «do sorvedouro podre da Civilização», para o caso algo na «linha do monarco-socialismo escandinavo dos anos 1970» (p. 15). Já não é mau, para quem se diz «demasiado deprimido». Ainda assim, prefiro as alternativas ao «desespero suicida» aventadas em desespero de causa: o Escapismo Passivo, uma espécie de eremitismo à maneira dos anacoretas do deserto (gosto, desde que haja água disponível com que matar a sede e lavar as partes); o Escapismo Activo, como o dessas comunidades colectivistas inspiradas pelos hippies das décadas de 1960 e 1970, mais fixas ou mais nómadas, recolhidas num mundo rural onde seja possível darmo-nos ao luxo de custear a nossa amostra de liberdade (vide página 19); a Vingança, talvez a mais polémica de todas as alternativas: «Outrora defendi o “Terrorismo Poético” e não a violência efectiva, porque a minha ideia era a de que a arte pudesse ser utilizada como uma arma. Agora já não estou certo de que isso seja possível. Mas talvez as armas possam ser utilizadas como arte» (p. 22). Tenho as mais sinceras dúvidas.
Leio sempre Peter Lamborn Wilson com imenso entusiasmo, revendo-me num certo sentimento de impotência e de esgotamento face aos horrores do mundo e à hipocrisia reinante. A crítica aos efeitos das tecnologias é-me especialmente cara, assim como o desespero pela afirmação da liberdade em contextos sociais opressivos e até humilhantes: da família ao Estado, passando pela escola/academia, é só escolher. O diagnóstico esboçado é certeiro, as soluções deixam-nos numa encruzilhada labiríntica cujo mérito é poder levar-nos a reconhecer as contradições em que vamos cumprindo a nossa existência. Ele mesmo o reconhece no que toca ao uso da violência em matéria de vingança. O Novo Niilismo, de que o autor afirma divergir tanto quanto concordar, pode, no entanto, equivaler a um «desespero criativo» do qual retiramos algo de verdadeiramente positivo: clarividência quanto ao estado do mundo, estímulo à procura de soluções individuais que permitam resistir e sobreviver ao sufoco diagnosticado. Neste sentido, a proposta das «zonas autónomas temporárias» mantém-se válida, não apenas pelo que simplesmente significa, mas por redimensionar o fim último das nossas acções deslocando-nos de ambições universais condenadas ao fracasso para um investimento mais produtivo no nosso pequeno mundo. Aquele que começa na nossa própria morada.
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