sexta-feira, 8 de abril de 2022

100 LIVROS PARA AS MINHAS FILHAS #36

 


   A guerra. A guerra é um charco sem fundo, imundície à tona para que não nos esqueçamos de que essência é feita a substância humana. Terá sido por acaso que a história da literatura começou pela guerra? Gilgameš a recrutar jovens para o exército, Vale de Sidim, gregos contra troianos, a guerra santa no Bhagavad-Guitá… Que santidade poderá haver numa guerra? Os homens matam-se uns aos outros pelos mais fúteis motivos, dentro de cada um de nós há uma besta adormecida pelo antibiótico amestrador. Ambição de poder, ganância, cobiça e inveja ou simplesmente o prazer de matar como quem joga um jogo de tabuleiro são razões, minhas filhas, que não deveis descurar neste mundo que é o nosso. Que posso eu dizer-vos deste tempo que não tenha já sido dito em tempos remotos?
   A história dos homens confunde-se com a história das guerras, de tal modo que somos levados a crer não haver sobre a Terra nenhuma conquista sem rastros de sangue. Se vos soarem onerosas tais considerações, não ajuizeis precipitadamente o estado de alma por detrás delas. Muitas foram as guerras que vi acontecer e nenhuma delas me dissuadiu desta convicção inabalável de que a par da maldade o bem é possível. Cultivemo-lo, com arte e sabedoria. Jamais com esse elenco miserável dos reality shows, mães de todas as bombas e ladys morte, fantasmas de Kiev e lobos cinzentos, heróis de uma banda desenhada com ossos, agora softwarizada em tempo real para entretenimento de multidões que são, já dizia o bom Alfred Jarry (1873-1907), «uma massa inerte e incompreensiva e passiva que de vez em quando é preciso agredi-la para detectar pelos seus grunhidos de urso onde está — e em que ponto está».
   Falemos, pois, de bonecos de madeira articulados, marionetas de varão, fantoches de luva, pantins. Acerca de Ubu, disse o seu maior cultor: «O senhor Ubu é um ser desprezível, razão pela qual se assemelha (por baixo) a todos nós». Obeso como o Pantagruel de François Rabelais, tem «merdra» ou «mérdia», conforme as traduções, como palavra de ordem, um piaçaba como ceptro, tudo nele aponta para um poder fecálico que é o poder em si mesmo nesse charco de que vos falava. Rei Ubu data de 1888, o cenário já era o mesmo: Polónia, Ucrânia, Lituânia, Rússia. Há coisas que nunca mudam, por diferentes que sejam os cus. 
   Dom Ubu, capitão de dragões, mata o rei da Polónia depois deste o recompensar, pelos muitos serviços, tornando-o conde de Sandomir. O apetite, porém, nunca se dá por satisfeito em corpulências insaciáveis, pelo que Dom Ubu congemina uma conspiração contra o rei e mata-o. Da família, escapam a rainha, que pouco durará, e o filho Parvolau, que acorrerá ao czar da Rússia para conseguir retomar as suas terras. Chegado a rei, Ubu fará o que por regra fazem quase todos os reis: apanha uma indigestão, apoderando-se das riquezas dos nobres, dando-lhes cabo do canastro, reformando a justiça, atirando os magistrados para um alçapão, tomando conta das finanças. Onde é que já teremos visto tal coisa?
   «Viva a guerra!», dizem todos quantos se acercam do tirânico Ubu. Por gostarem dela? Por serem fiéis ao rei que os explora? Vá lá a gente entender esses oficiais que em movimentos na Ucrânia obedeceram a Ubu, rei dos empaladores. A única coisa que daremos por certa nesta história é que «Se não houvesse Polónia, não haveria polacos!» A tal lógica deverá ser reduzida a filosofia — ou a patafísica, que é a ciência do que se acrescenta à metafísica —, de Dom Ubu. 
   Neste Ubu (Campo das Letras, 2005) que ora vos ofereço ides encontrar outros Ubus noutras condições que não apenas a de rei, como esse hilariante Ubu Agrilhoado que tudo fez para ser escravo mas nem para escravo serviu. Era demasiado gordo. «Vejo que perdes qualidades, estás feito homem honesto», diz-lhe a Dona Ubu. «Viva a escravatura!», exclamará o antigo rei que nem promovido a escravo perderá manias antigas: «Estou farto daquelas marchas atrás dos meus exércitos, pela Ucrânia fora. Não me mexo mais, pancichouriça! Agora recebo em casa e as bestas têm autorização de nos vir visitar nos dias marcados.» 
   Ficai pois sabendo, queridas filhas, que há escravos do poder que podem chegar a reis. Desses, nada esperamos porque nada têm para oferecer que mereça confiança ou finança. Estamos como Guinhol nesta história: «Bebo pois, para ter cada vez mais cara de pau e assim chegar à ciência infusa.» Outra ciência não nos convém. Vai uma taça de Beaujolais?

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