Talvez venha de Tarzan, este fascínio por tudo quanto se opõe à civilização. Mais tarde, pendi quase sempre para o lado índio nos westerns. Não foi com repulsa que escarneci de Vieira por chamar bárbaros aos indígenas, foi já com a consciência de uma selva devastada pelo progresso cujo ódio é o mais eficaz dos combustíveis. Aos 15 ofereceram-me “O Papalagui”, porta aberta para uma autocrítica ainda ignorante do logro e do malogro em torno do autor dessas páginas. A propósito de “O Coração das Trevas” fala-se do resgate de um homem para a civilização, ao contrário do que se fala em “Walden”. Thoreau sentiu necessidade de se isolar nos bosques, distanciando-se do mundo civilizado a que regressou posteriormente. Que apelo era esse senão a esperança de se reencontrar com uma raiz cerceada sem remédio? Inspirou e continua a inspirar imensa gente para quem a vida selvagem não é apenas um fetiche que se compraz com postais de roteiros turísticos. Ao contrário, é um mistério por resolver nas selvas de cimento em que a barbárie se perpetua ao som de música erudita. Diz-se que “O Menino Selvagem” (1970) baseia-se na história de Victor de Aveyron, um rapaz encontrado no meio dos bosques onde terá crescido como um animal. É selvagem porque se comporta sem educação, ao contrário de outras crianças da mesma idade que se comportam como seres instruídos. Isto é, maltratam Victor quando lhe põem as mãos em cima. O filme surge 11 anos passados sobre “Os Quatrocentos Golpes”, primeira longa-metragem de François Truffaut (1932-1984). O jovem rebelde que foge da civilização na direcção do mar dá lugar a um jovem selvagem capturado pela civilização, colocando-se o próprio Truffaut no papel de domesticador. Já agora, diga-se que Jean-Pierre Cargol, a criança escolhida para o papel de selvagem, é de origem cigana (conhecido por Rey Cargol no mundo da música). Isto hoje talvez gerasse polémica. Acho “O Menino Selvagem” um filme bastante triste, prefiro o travelling final do desertor Antoine Doinel (provavelmente também ele baseado em factos… autobiográficos). Ainda assim é um dos meus filmes preferidos, suponho que pela contradição que nele encontrei entre os vícios da cultura e as virtudes da selva… da animalidade… dos instintos. Só não lhe chamem barbárie, essa foi monopolizada pelo homem doméstico das grandes civilizações.
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