domingo, 3 de abril de 2022

CINEMATÓGRAFO #1

 


Resolvi rever os filmes da minha vida antes que o mundo acabe. Comecei ontem e não sei com que frequência cumprirei tal objectivo, desejando honestamente antecipar-me ao Apocalipse. Sem qualquer desejo de provocação, muito menos sem intuitos políticos, dei início ao périplo com um filme soviético. Para sermos exactos, Dziga Vertov (1896-1954) nasceu numa cidade actualmente polaca, Białystok, ao seu tempo anexada pelo Império Russo. Antes de se ter dedicado ao cinema, Vertov foi músico. Há quem lhe atribua a invenção da música concreta. “O Homem da Câmara de Filmar” (1929) é, em boa verdade, uma peça sinfónica composta por imagens, acompanhada então por música ao vivo nos teatros onde era exibido. Começa exactamente com a sala a encher-se de gente, a orquestra preparada para acompanhar a projecção, a primeira imagem a surdir na tela. Altamente experimental, disse-me um amigo que estudou cinema ser hoje abordado enquanto “tratado de linguagem cinematográfica”. Faz sentido. É puro metacinema, o homem da câmara de filmar filma-se a si mesmo a filmar, por vezes em poses arriscadas que mostram ao público como conseguia ele obter aqueles planos surpreendentes. O autor chamou-lhe cine-olho, sem argumento, sem actores, a vida tal como ela é, documentada, porém, com o recurso a truques técnicos que, afinal, tornam tudo altamente irónico, pois nada de real há num homem com uma câmara de filmar dentro de uma caneca de cerveja. Tento imaginar o espanto e o assombro do público a verem os mendigos que dormiam na rua, uma mulher de pernas abertas a dar à luz, uma rapariga a disparar contra a cruz suástica no chapéu de um boneco de feira, um dia na Moscovo agitada de então, com o homem da câmara de filmar aparecendo e desaparecendo nos lugares mais inusitados. Uma curiosidade: ao longo dos anos, e já lá vai quase um século, várias foram as bandas sonoras imaginadas para este filme. Há delas para todos os gostos. A do DVD que tenho em casa é da responsabilidade da norte-americana Alloy Orchestra, mas sugerem-se a de Michael Nyman, disponível noutros DVDs, e a dos The Cinematic Orchestra, disponível em CD.

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