Marraquexe, 2009. Talvez 2010. Por aí. Estou com a Ana a comer uma tajine de frango nas barracas de Jemaa el-Fna. Quando terminámos, aproximou-se uma criança que nos observava, a alguma distância, quase desde o início da refeição. Apontou para os pratos vazios. Apenas ossos e um resto de pão. Deve querer pão, pensei. Pedi pão e dei-lhe. Continuou a apontar para os pratos. O empregado que nos servia tentou afastá-lo. Fizemos sinal ao miúdo no sentido de que poderia levar os pratos. Lançou-se aos ossos e começou a rapá-los, satisfeitíssimo com o molho que lhe escorria pelos cantos da boca. Limpou os pratos com pão, tinha um sorriso de satisfação no rosto de que nunca mais me esquecerei. Lembro-me amiúde desta história pelas mais diversas razões. Por exemplo, quando leio relatos de escritores admiráveis que andaram por aquelas terras a engatar crianças igualmente miseráveis. Jean Genet, Paul Bowles, William Burroughs, Pasolini, Tennessee Williams, tantos. A miséria de Marrocos era um paraíso para estes homens da cultura ocidental que ali podiam satisfazer a sua sexualidade com os rapazes e as raparigas que mendigavam pelas ruas das cidades ocupadas. Muhammad Chukri (1935-2003) foi uma dessas crianças, nascida no seio de uma família paupérrima, com um pai extremamente violento e uma mãe submissa, a fome a roer-lhe o estômago desde tenra idade: «A fome dá-me dores. Chupo os dedos sem parar. Vomito e nada sai da boca, só uns fios e baba.» Isto é dito logo no segundo parágrafo de Pão Seco (Antígona, Junho de 2021), doloroso relato autobiográfico traduzido para português por Hugo Maia. A escrita de Chukri é crua, exactamente no sentido de não ter temperos a alindar os relatos de uma realidade que foi a sua. Nem cozinhados que disfarcem uma infância violenta e uma adolescência estigmatizada por episódios cruéis. «O meu pai é um monstro.» Está dito, não é preciso mais. A gente sabe porque é que ele é um monstro, mas a simplicidade, a brevidade, a clareza da sentença, sem moralismos sinuosos nem tiradas sofisticadas, concedem à monstruosidade uma verosimilhança que de outra forma poder-se-ia perder. O autor começou a alfabetizar-se com vinte e um anos de idade (1956), estreando-se com um conto publicado dez anos depois. O seu estilo é a ausência de estilo (ainda bem), numa linguagem directa, em frases curtas que golpeiam a consciência do leitor sem esperarem qualquer tipo de adesão ou de simpatia. De uma escrita destas podemos dizer o que Aristóteles dizia quando, na Poética, falava de catarse. É uma purificação que amaldiçoa o amor dos pais por julgá-lo falso, que se mistura com ganzados e bêbedos para descobrir o lado mais negro da noite, o das violações e dos assaltos, é uma purificação açoitada por dores carnais e de alma, brutalidade, bestialidade, uma bestialidade que se adopta e põe-se em prática como táctica de sobrevivência. No meio de tudo isto, a descoberta do sexo chega a ser cómica: «Agarrou na minha verga erecta com a mão. Pensei: E se a boca de baixo tiver dentes?» O cómico, obviamente, acompanha-se do trágico. A ignorância. Confiando no relato, a infância de Chukri caracteriza-se pela ausência de tudo quanto hoje consideramos ser típico de uma infância. Ele diz-nos logo que não aprendeu a brincar. Cresceu na vagabundagem, frequentando bordéis, dormindo nas ruas, sobrevivendo de biscates, desconfiando do amor, envolvendo-se com proxenetas e contrabandistas, passando fome. Aos 16 anos: «Maldito seja o pão. O gato que vi no cais de descarga do peixe talvez seja mais feliz do que eu. É que ele consegue comer peixe imundo sem vomitar.» Torna-se difícil de imaginar uma imagem mais crua da fome, invejar o estômago de um gato por aguentar a podridão que o nosso não aguenta. A prostituição, pois claro, como último reduto da sobrevivência. E lá está o velho que paga para o broche. Não vale a pena alongarmo-nos muito, prefiro partilhar uma passagem que, quanto a mim, dá bem conta daquilo que este Pão Seco tem para nos oferecer sem rodeios nem juízos. A consciência política pode tomar forma a partir de imagens breves, vivas, daquelas que nos acompanham para a vida como provas de uma iniquidade que comanda o mundo. Esta, por exemplo: «Entrei no mercado. Uma mulher estrangeira pagou as suas compras e voltou a guardar na mala a pequena carteira recheada de notas. Reparou no meu olhar dirigido à sua mala. Agarrou-a firmemente como precaução. Disse-me com um olhar gentil: Não tens vergonha? Embaraçado saí do mercado. Assim é a miséria do mundo, ó senhora do mundo. Aqueles que têm posses também não têm qualquer vergonha. São eles que nos compram pelos mais baixos preços. Talvez tu não precises de te vender.» A partir disto, acrescentar o quê?
1 comentário:
muito bom! Livro poderoso e boa resenha! Um Cossery na primeira pessoa
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