Inconveniente ser honesto, proibido ser autêntico. Escrevi para não me esquecer, pensando em coisas bem piores. Já ninguém vive nas aldeias por onde andámos, recuperadas para uso exclusivo de turistas carentes de um silêncio que o próprio turismo se encarrega de deteriorar. Experimenta calçar os meus sapatos e tenta caminhar a ouvir o meu coração como eu ouço. Prometo calçar os teus. Sozinho é que estás bem, disseste — como se não estivesses presente desmentindo a solidão que me faria bem fosse ela possível. Para estar verdadeiramente só teria que me desfazer de mim. Mas deixemos por momentos essas avarias, concentremo-nos nas cerejeiras carregadas e no queijo amanteigado de Seia e na regueifa que trouxe da Covilhã. Tenho pensado muito ultimamente e no pensar não encontro senão desespero, uma vida desperdiçada a tentar descobrir palavras que se ajustem a um corpo disforme. Não há palavras adequadas a estes modos de sentir, palavras sem raiva, sem paixão, palavras sólidas como pedras, nem uma palavra há que se adeqúe ao transtorno de viver como se viver fosse uma obrigação. O ideal seria adormecer e não voltar a acordar, adormecer num sono limpo, sem sonhos nem dores nem sensações falsas de sentir. Será possível uma vida assim? Será possível uma vida o mais parecida com o que julgamos ser a morte? Prometo calçar os teus sapatos, caminhar ao teu lado para onde me quiseres levar, mas não esperes que eu queira levar-te a algum lado. Porque não quero. Só tenho pressa de ficar parado, deitado, dormente, o pó do sono injectado nas veias e nem o sussurro de uma palavra a incomodar a página em branco. Mas deixemos por momentos essas avarias, concentremo-nos nos afazeres registados numa agenda inventada para nos fingirmos úteis. Mudar o mundo, já sabemos, não mudaremos; e a alegria de viver num mundo assim é, no mínimo, um insulto à inteligência. Terrível beco sem saída em que nos enfiaram.
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