Poderá parecer-vos inadequado legar-vos um
livro de contos do mais relevante poeta português do século XX, havendo tantos
e tão diferentes de poesia que poderiam ser proveitosos na descoberta
desse que um dia cortou relações com o sol e as estrelas. Dá-se que estes Contos Completos (Antígona, Maio de
2012), organizados por Zetho Cunha Gonçalves, que na edição da Bonecos Rebeldes
(2008) eram Contos, Fábulas & Outras
Ficções, poderão ser-vos mais úteis enquanto preâmbulo a um poeta cheio de
armadilhas do que os seus próprios versos. Desde logo, por deverdes ter cautela
sempre que a Pessoa alguém associar o adjectivo completo, já que, se há
ensinamento legado pelo tempo nesta matéria, esse ensinamento é estar sempre
incompleta a completude num universo que se caracteriza, antes de mais, por ser
fragmentário e, sendo fragmentário, manter eternamente aberta as múltiplas
possibilidades de organização dos fragmentos originalmente guardados numa arca,
posteriormente depositados em arquivos e finalmente disseminados em livros sem
fim. Não está sequer em causa o problema de ser múltiplo ou uno esse que nasceu
já mascarado no apelido, questão de heteronímia e pseudonímia e alter-egos e
semi-personalidades e quejandos, mas tão-somente o de incompleta ser sempre a
matéria que se diz de Pessoa por não ser da sua natureza completar-se.
Indisciplinador da banalidade quotidiana,
chama-lhe Zetho, sublinhando-lhe a ironia cáustica, o humor despudorado e
inaudito, o sarcasmo e o absurdo, o tom perversamente lúdico, qualidades
contrárias a quem sempre o quis sorumbático e obscuro, místico e esotérico,
hermético ou simplesmente louco, sério, demasiado sério, tão sério que seria
crime de lesa pátria imaginá-lo alcoólatra e fazedor de quadras populares,
inventor de jogos de tabuleiro e criador de textos publicitários cómicos como
esse O Automóvel Ia Desaparecendo
neste volume recuperado à laia de conto. Poupai-vos, pois, a tristezas, minhas
filhas, sempre que vos instigar o discurso contraditório, metafísico sem
metafísica nenhuma, reflexivo e tantas vezes dolorosamente revelador, revelador
como um parto de verdade no mais fundo do pensamento, desse que cantou a
melancolia e a solidão e o vazio e o desassossego e o desespero e a angústia como
mais ninguém entre nós. Se há angústia na angústia é senti-la percebendo quão inútil
ela nos é.
Atentai-vos a estas Fábulas para as Nações Jovens, à Rosa de Seda e a esse A
Varina e a Lógica, a O Segredo de
Roma, Eu, o Doutor ou O Burro e as Duas Margens, peças curtas
que permitem entender quanto de comédia há no trágico da vida passageira e
quanto de tragédia há no cómico dos absolutos com que procuramos disfarçar a nossa
efemeridade. Este é o Fernando Pessoa que pretendo deixar-vos, para que com ele
possais fazer o que mais vos aprouver, o Pessoa que resolveu a efemeridade não
com verdades absolutas, não com Deus nem com a Eternidade nem com o Infinito,
mas com aporias de Zenão e paradoxos que, implodindo o infinito, o transformam
em fragmentos, como quem destrói à martelada a estátua de uma verdade absoluta
para se entreter a contemplar-lhe os cacos.
Bastaria O
Banqueiro Anarquista para que se justificasse esta passagem e testemunho.
Ah, e como vem tão a propósito esse inimigo da burguesia nela instalado para
dela colher o suco, esse inimigo das ficções sociais que se empenha em
resolvê-las, não destruindo-as, mas delas tirando proveito na medida em que as
supera dominando-as: «O que saiu das agitações políticas em Roma? O império romano
e o seu despotismo militar. O que saiu da Revolução Francesa? Napoleão e o seu
despotismo militar. E você verá o que sai da Revolução Russa… Qualquer coisa
que vai atrasar dezenas de anos a realização da sociedade livre… Também, o que
era de esperar de um povo de analfabetos e de místicos?...» Se a espaços vos
parecer cínico o discurso, então é porque o é de verdade. E é bom. Porque é
sobre a liberdade num tempo em que a não havia, porque é, à maneira de Maquiavel
(lá iremos), sobre o que é, desmascarando-o para superá-lo, “despessoando-o”
para expurgá-lo de toda e qualquer espécie de hipocrisia.
Pode o desejo de liberdade compadecer-se com opressões e humilhações? Será a liberdade compatível com as mais corriqueiras formas de tirania instaladas entre os homens, sejam elas a imposição de uma ideia ou a incapacidade de a discutir? Não. Por isso são tão pertinentes as asserções deste banqueiro anarquista que, propondo aos seus camaradas o fruto das suas conjecturas, em resposta aos seus argumentos não recebeu senão «lixo, coisas como essas que os ministros respondem nas câmaras quando não têm resposta nenhuma… Então é que eu vi com que bestas e com que cobardões estava metido! Desmascararam-se. Aquela corja tinha nascido para escravos. Queriam ser anarquistas à custa alheia.» Chegará o dia, minhas filhas, se não chegou já, em que neste verbo desmascarar ireis encontrar o poder de um programa estético que não seria possível concretizar senão recorrendo a uma imensidão de máscaras. Isso devemos a Fernando Pessoa, por isso lhe devemos estar gratos.
2 comentários:
Eu queria ter sido sua filha para ter o privilégio de um guia para minhas leituras. Tive, no entanto, mãe amante das artes, que me iniciou na litteratura.O livro "Desassossego" está na minha cabeceira e estou lendo-o pela 3a. vez.
Boa. E que edição está a ler? Quem organiza? Pergunto porque são todas muito diferentes umas das outras.
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