O décimo volume da colecção de livros do Teatro da Rainha, publicada em
parceria com a editora Companhia das Ilhas, é uma pérola praticamente esquecida
nos recifes da sátira renascentista. De Niccolò Machiavelli (1469-1527), ou, se
preferirem, Nicolau Maquiavel, fala-se muito mais de “O Príncipe”, obra-prima do
pensamento político quinhentista. Sublinhe-se, porém, que esse livro maldito
apenas veio a lume postumamente, em 1532, inspirando de imediato refutações
violentas e polémicas intermináveis. Honrosamente incluído no Index Librorum
Prohibitorum, decorria o ano de 1551, aí foi permanecendo, ao lado de obras de
Dante, Montaigne, Descartes, La Fontaine, Pascal, Montesquieu, Voltaire,
Rousseau, Sade, Lutero, Milton, Swift, entre tantos outros que a Igreja
Católica fez o favor de exaltar censurando-os. É quase sempre assim, ou não
fosse o fruto proibido o mais apetecido.
Ainda recentemente foi por cá publicado “Maquiavel e Nós” (VS, Outubro de 2021), magnífico ensaio de Louis Althusser, dando conta de quão vivo se manteve o interesse pela obra desse cujo nome foi transformado em etiqueta do mal. Dizemos maquiavélico, tal como dizemos cínico, sempre em tom pejorativo, para falarmos de oportunismo e de safadeza, quando, na verdade, talvez devêssemos usar tais conceitos para nos referirmos ao desprezo pela hipocrisia que adorna comportamentos sociais e maquilha os arautos da moral e dos bons costumes. Quem reconheceu em Maquiavel um anatomista das formas de poder, um denunciador daquilo que é a realidade contra um ideólogo do que devia ser, talvez tenha estado mais próximo da verdade. Tenhamos em conta as palavras de Maurice Merleau-Ponty: «O poder traz à sua volta um halo, e sua maldição — como, aliás, também a do povo que não se conhece — é não ver a imagem de si mesmo que oferece aos outros.» Que outra coisa fez Maquiavel senão devolver-nos a nossa própria imagem, despidos, desmaquilhados, “desaureolados” como no conhecido poema em prosa de Charles Baudelaire?
É também no domínio da estratégia que se movem as pedras em “Mandrágora”, a primeira de três peças escritas pelo florentino, agora recuperada em tradução de Isabel Lopes, com prefácio de Fernando Mora Ramos e alguns anexos preciosos, tais como as canções acrescentadas, em 1526, para serem cantadas pela amante Barbara Salutati, com música de Philippe Verdelot, e o prólogo, em verso e em prosa, onde a trama aparece destarte resumida: «Um amante infeliz, um doutor pouco astuto, um frade de má vida, um parasita que é o benjamim da malícia sejam por hoje o vosso passatempo» (pp. 77-78). Mas se falo em estratégia é também porque, caído em desgraça após o regresso dos Médicis a Florença, torturado e exilado na casa de campo, dedicou-se Maquiavel à poesia e ao teatro nesse período de ociosidade como forma de expurgar, pelo riso, fúrias interiores e almejar reconhecimento que o reabilitasse publicamente. O interesse pela corrupção dos homens leva-o à prática da sátira com inesperado sucesso.
Ainda recentemente foi por cá publicado “Maquiavel e Nós” (VS, Outubro de 2021), magnífico ensaio de Louis Althusser, dando conta de quão vivo se manteve o interesse pela obra desse cujo nome foi transformado em etiqueta do mal. Dizemos maquiavélico, tal como dizemos cínico, sempre em tom pejorativo, para falarmos de oportunismo e de safadeza, quando, na verdade, talvez devêssemos usar tais conceitos para nos referirmos ao desprezo pela hipocrisia que adorna comportamentos sociais e maquilha os arautos da moral e dos bons costumes. Quem reconheceu em Maquiavel um anatomista das formas de poder, um denunciador daquilo que é a realidade contra um ideólogo do que devia ser, talvez tenha estado mais próximo da verdade. Tenhamos em conta as palavras de Maurice Merleau-Ponty: «O poder traz à sua volta um halo, e sua maldição — como, aliás, também a do povo que não se conhece — é não ver a imagem de si mesmo que oferece aos outros.» Que outra coisa fez Maquiavel senão devolver-nos a nossa própria imagem, despidos, desmaquilhados, “desaureolados” como no conhecido poema em prosa de Charles Baudelaire?
É também no domínio da estratégia que se movem as pedras em “Mandrágora”, a primeira de três peças escritas pelo florentino, agora recuperada em tradução de Isabel Lopes, com prefácio de Fernando Mora Ramos e alguns anexos preciosos, tais como as canções acrescentadas, em 1526, para serem cantadas pela amante Barbara Salutati, com música de Philippe Verdelot, e o prólogo, em verso e em prosa, onde a trama aparece destarte resumida: «Um amante infeliz, um doutor pouco astuto, um frade de má vida, um parasita que é o benjamim da malícia sejam por hoje o vosso passatempo» (pp. 77-78). Mas se falo em estratégia é também porque, caído em desgraça após o regresso dos Médicis a Florença, torturado e exilado na casa de campo, dedicou-se Maquiavel à poesia e ao teatro nesse período de ociosidade como forma de expurgar, pelo riso, fúrias interiores e almejar reconhecimento que o reabilitasse publicamente. O interesse pela corrupção dos homens leva-o à prática da sátira com inesperado sucesso.
Diz a biógrafa Marie Gaille-Nikodimov sobre “Mandrágora”: «Ao inaugurar
uma era de fecunda criação teatral e cómica, esta peça é fruto de uma mistura feliz
entre uma tradição florentina de teatro cómico e popular e o teatro latino, em
particular o de Plauto, esse homem cuja morte, segundo o epitáfio citado por
Aulo Gélio, provocou o luto da comédia.» A peça aparece em Florença no ano de
1518, sob o título “Commedia di Calliamaco e Lucrezia”. Êxito retumbante. O
tema do adultério numa sociedade oligárquica, extremamente preocupada com heranças
e linhagens, tinha tudo para enrubescer beatos de pacotilha e divertir mentalidades
dissolutas, ainda que sob a égide de uma ideia nuclear que certamente
garantiria o perdão pela ousadia: a carne é fraca.
Já naquele tempo o picante da sexualidade era entretenimento eficaz, mesmo enquanto estrategicamente usado para beliscar uma Igreja que ainda não se redimira da figura contraditória de Savonarola (o dominicano que acabou enforcado e queimado depois de andar a incinerar obras de arte). E que beliscões dá Maquiavel na Igreja do seu tempo, através da figura de um Frei Timóteo incumbido de convencer uma jovem a ir para a cama com outro homem que não seu marido. Não se julgue que é o único a levar por tabela, nesta peça em que todos dizem mal de todos pela calada. Siro, o empregado de Calímaco, chama velhaco a Ligúrio, o casamenteiro; Ligúrio chama manhoso ao frade; o frade diz que Sóstrata, mãe de Lucrécia, é uma velhaca; Sóstrata chama ranhosa a Lucrécia; esta chama parvo ao marido; o marido, o doutor Nícia, diz que Lucrécia é uma tresloucada; e nem Siro escapa, pois que é o próprio patrão, Calímaco, a dizê-lo velhaco.
De toda esta velhacaria o que resulta? Calímaco está perdido de amores pela bela Lucrécia, que é mulher honesta e honrada, casada com o velho Doutor Nícia. Este vive infeliz por não conseguir ter filhos, pelo que se deixa levar na conversa de Ligúrio, o casamenteiro, que em conluio com Calímaco arranja maneira de a ambos servir. Fim: meter Calímaco na cama com Lucrécia para que esta possa dar um filho a Nícia. Com fins tão beneméritos como não justificar os meios? A trapaça é montada. A poção de mandrágora, planta que a tradição garante de há muito infalíveis efeitos fecundantes, foi preparada segundo as regras da mais experimentada medicina. Cada qual jogará com as armas que tem, uns mais astutos e manhosos, outros mais néscios, mas todos igualmente mal-intencionados, regendo-se pelo axioma do mal menor e pela sentença do dinheiro como poder. São naturalmente anti-kanteanos, muito antes de Kant inventar o imperativo categórico. A dado momento questionamo-nos: quem será mais manhoso, o cortesão Ligúrio ou Frei Timóteo? O leitor que responda.
Deste livro primoroso recolherei eu algumas máximas que me parecem em sintonia com o pensamento político do seu autor. Por exemplo, quando Calímaco diz que «Nunca uma coisa é tão desesperada que não se encontre modo de ter alguma esperança.» Ou quando Sóstrata se revela na essência, afirmando que sempre ouviu dizer «que para um homem prudente é de bom aviso de entre muitos males escolher o menor.» Ou mesmo quando o Frade sentencia, tentando convencer Lucrécia: «No que toca à consciência, tendes de ter em mente esta regra geral: onde há um bem certo e um mal incerto, não se deve nunca desistir desse bem por medo daquele mal.» São aforismos de utilidade inquestionável neste nosso tempo igualmente movido pela ganância e dissimulado pela hipocrisia, um tempo medido pelo dinheiro — time is money — que tudo compra porque tudo se vende e nada muda. Se há autor que nos reflecte enquanto civilização, esse autor é, sem dúvida alguma, Maquiavel, pois toda a política que nos trouxe aonde estamos foi por ele retratada sem peias nem melindres nem pudores. Bendito seja.
Já naquele tempo o picante da sexualidade era entretenimento eficaz, mesmo enquanto estrategicamente usado para beliscar uma Igreja que ainda não se redimira da figura contraditória de Savonarola (o dominicano que acabou enforcado e queimado depois de andar a incinerar obras de arte). E que beliscões dá Maquiavel na Igreja do seu tempo, através da figura de um Frei Timóteo incumbido de convencer uma jovem a ir para a cama com outro homem que não seu marido. Não se julgue que é o único a levar por tabela, nesta peça em que todos dizem mal de todos pela calada. Siro, o empregado de Calímaco, chama velhaco a Ligúrio, o casamenteiro; Ligúrio chama manhoso ao frade; o frade diz que Sóstrata, mãe de Lucrécia, é uma velhaca; Sóstrata chama ranhosa a Lucrécia; esta chama parvo ao marido; o marido, o doutor Nícia, diz que Lucrécia é uma tresloucada; e nem Siro escapa, pois que é o próprio patrão, Calímaco, a dizê-lo velhaco.
De toda esta velhacaria o que resulta? Calímaco está perdido de amores pela bela Lucrécia, que é mulher honesta e honrada, casada com o velho Doutor Nícia. Este vive infeliz por não conseguir ter filhos, pelo que se deixa levar na conversa de Ligúrio, o casamenteiro, que em conluio com Calímaco arranja maneira de a ambos servir. Fim: meter Calímaco na cama com Lucrécia para que esta possa dar um filho a Nícia. Com fins tão beneméritos como não justificar os meios? A trapaça é montada. A poção de mandrágora, planta que a tradição garante de há muito infalíveis efeitos fecundantes, foi preparada segundo as regras da mais experimentada medicina. Cada qual jogará com as armas que tem, uns mais astutos e manhosos, outros mais néscios, mas todos igualmente mal-intencionados, regendo-se pelo axioma do mal menor e pela sentença do dinheiro como poder. São naturalmente anti-kanteanos, muito antes de Kant inventar o imperativo categórico. A dado momento questionamo-nos: quem será mais manhoso, o cortesão Ligúrio ou Frei Timóteo? O leitor que responda.
Deste livro primoroso recolherei eu algumas máximas que me parecem em sintonia com o pensamento político do seu autor. Por exemplo, quando Calímaco diz que «Nunca uma coisa é tão desesperada que não se encontre modo de ter alguma esperança.» Ou quando Sóstrata se revela na essência, afirmando que sempre ouviu dizer «que para um homem prudente é de bom aviso de entre muitos males escolher o menor.» Ou mesmo quando o Frade sentencia, tentando convencer Lucrécia: «No que toca à consciência, tendes de ter em mente esta regra geral: onde há um bem certo e um mal incerto, não se deve nunca desistir desse bem por medo daquele mal.» São aforismos de utilidade inquestionável neste nosso tempo igualmente movido pela ganância e dissimulado pela hipocrisia, um tempo medido pelo dinheiro — time is money — que tudo compra porque tudo se vende e nada muda. Se há autor que nos reflecte enquanto civilização, esse autor é, sem dúvida alguma, Maquiavel, pois toda a política que nos trouxe aonde estamos foi por ele retratada sem peias nem melindres nem pudores. Bendito seja.
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