quarta-feira, 15 de junho de 2022

A HIPOCRISIA AVANÇA DISFARÇADA DE VIRTUDE

 
«Pode acontecer que a forma como as coisas andam, seja mais bem apreendida numa miniatura do modelo global, por exemplo num país pequeno onde as taras do capitalismo se expõem às claras. Tomemos o caso de Portugal, situado nas margens da Europa, longe dos territórios em conflito e do ruído de botas. País onde a triunfante democracia representativa não esconde uma corrupção maciça que atinge as instituições, da mais pequena câmara municipal financiada pelo capitalismo predador (incluindo financeiros ucranianos e russos) às corrompidas forças armadas que vendem o seu armamento no mercado negro e aos políticos corruptos que se reproduzem por geração espontânea. País onde a comunidade de proletários imigrantes ucranianos ultrapassa as 30.000 pessoas e onde a política de fronteiras assassinou a sangue-frio, no aeroporto de Lisboa, uma dessas pessoas, Ihor Homenyuk, durante um banal controlo de documentos. / País onde ainda há pouco o Ministério do Interior fornecia aos funcionários russos em Lisboa os dados pessoais dos raros exilados que manifestavam diante da sua embaixada, em protesto contra o regime. E onde, como por toda a parte, a invasão da Ucrânia pelo regime de Putin desencadeou um ruidoso cortejo de choros, protestos e afirmações de solidariedade com o povo ucraniano, ou seja, onde, como por toda a parte, a hipocrisia avança disfarçada de virtude. Para coroar tudo isto, houve aqui o extraordinário «caso Abramovitch». O conhecidíssimo multimilionário russo, comprador de clubes de futebol — excelentes passadiços para o branqueamento de dinheiro sujo — tornou-se português graças a um dos Visas Gold que desde há alguns anos são vendidos pelo governo do PS para ajudar a encher os cofres do Estado em troca de um «investimento» no sector imobiliário. É assim que milhares de personagens da mesma laia compram sem cessar palacetes, hotéis de luxo, vivendas urbanas, vinhedos famosos: russos, brasileiros, ucranianos, chineses, sauditas, estado-unidenses e até franceses ávidos de sol barato. O país salda os seus bens. / (…) Esta curta digressão serve de introdução. Ao contrário da guerra, o ridículo e a indignidade não matam. Mas termos consciência disso ajuda-nos a ganhar um pouco de altura para afrontarmos o inumano; para nos demarcarmos um pouco da estupidez e da mediocridade dos que nos arrastam para o abismo.»
 
Charles Reeve, introdução do artigo “Contra a Mortífera Trindade do Nacionalismo, da Guerra e do Capitalismo”. Na revista “Flauta de Luz”, n.º 9.

Sem comentários: