«Pode acontecer que a forma como as coisas andam, seja
mais bem apreendida numa miniatura do modelo global, por exemplo num país
pequeno onde as taras do capitalismo se expõem às claras. Tomemos o caso de
Portugal, situado nas margens da Europa, longe dos territórios em conflito e do
ruído de botas. País onde a triunfante democracia representativa não esconde
uma corrupção maciça que atinge as instituições, da mais pequena câmara
municipal financiada pelo capitalismo predador (incluindo financeiros
ucranianos e russos) às corrompidas forças armadas que vendem o seu armamento
no mercado negro e aos políticos corruptos que se reproduzem por geração
espontânea. País onde a comunidade de proletários imigrantes ucranianos
ultrapassa as 30.000 pessoas e onde a política de fronteiras assassinou a
sangue-frio, no aeroporto de Lisboa, uma dessas pessoas, Ihor Homenyuk, durante
um banal controlo de documentos. / País onde ainda há pouco o Ministério do
Interior fornecia aos funcionários russos em Lisboa os dados pessoais dos raros
exilados que manifestavam diante da sua embaixada, em protesto contra o regime.
E onde, como por toda a parte, a invasão da Ucrânia pelo regime de Putin
desencadeou um ruidoso cortejo de choros, protestos e afirmações de
solidariedade com o povo ucraniano, ou seja, onde, como por toda a parte, a
hipocrisia avança disfarçada de virtude. Para coroar tudo isto, houve aqui o
extraordinário «caso Abramovitch». O conhecidíssimo multimilionário russo,
comprador de clubes de futebol — excelentes passadiços para o branqueamento de
dinheiro sujo — tornou-se português graças a um dos Visas Gold que desde há
alguns anos são vendidos pelo governo do PS para ajudar a encher os cofres do
Estado em troca de um «investimento» no sector imobiliário. É assim que
milhares de personagens da mesma laia compram sem cessar palacetes, hotéis de
luxo, vivendas urbanas, vinhedos famosos: russos, brasileiros, ucranianos,
chineses, sauditas, estado-unidenses e até franceses ávidos de sol barato. O
país salda os seus bens. / (…) Esta curta digressão serve de introdução. Ao
contrário da guerra, o ridículo e a indignidade não matam. Mas termos consciência
disso ajuda-nos a ganhar um pouco de altura para afrontarmos o inumano; para
nos demarcarmos um pouco da estupidez e da mediocridade dos que nos arrastam
para o abismo.»
Charles Reeve, introdução do artigo “Contra a Mortífera
Trindade do Nacionalismo, da Guerra e do Capitalismo”. Na revista “Flauta de
Luz”, n.º 9.
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