quarta-feira, 15 de junho de 2022

TEN YEARS AGO (1997)

 


Será pedir demais? Faz hoje 10 anos que o perguntaste. E eu ainda não respondi. Estou a ouvir Richard Galliano e Michel Portal, sentado à secretária que encostei a uma parede do sótão, rodeado de livros sublinhados e anotados. São necessários dois para dançar um tango. Pelas clarabóias sujas entra uma luz acinzentada como a do meu rosto sempre que te recordo. Preferia ter já esquecido tudo, mas como um lapso que nos envergonha permanece viva no desespero a ânsia de esperar. Ser apanhado em contramão, cometer uma gafe no discurso, fazer figuras tristes e não haver tapete para debaixo do qual possamos varrer o opróbrio, são espinhos enterrados na carne que aí hão-de perdurar até que a carne apodreça. Agora invento sonhos para gerar sorrisos. Do mal, o menos: a alegria dos outros. E adormeço a pensar na pergunta que me fizeste há 10 anos e à qual ainda não respondi. De passeio pelo interior, visitei uma praia fluvial apresentada algures como um dos lugares mais belos do país. Encontrei tudo abandonado, as infra-estruturas de apoio num doloroso estado de degradação. Até as águas me pareceram chocas. Ainda assim, mergulhei. Porventura esperando encontrar no lodo, no fundo das águas, entre a vegetação, qualquer coisa que respirasse. Sentei-me depois num banco partido e tirei algumas fotografias aos cacos espalhados pelo chão como pelo meu corpo se espalhava a água suja. Mirei ao longe uma ponte por onde outrora passavam comboios, antes da linha haver sido desactivada. Foi tal a desolação que sorri. Do mal, o menos: uma dor que ri. Respondo-te agora que por mais que me peças nunca será demais o quanto me pedires.

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