segunda-feira, 13 de junho de 2022

DOIS LIVROS SOBRE PESSOA

 


   Foi há muitos anos, no tempo dos CD-ROM. Ofereceram-me um desses objectos anacrónicos com informação vária sobre Fernando Pessoa, poeta que à época já lia com assiduidade. Entre os conteúdos, alguns vídeos. Não me esqueço de dois. Um com Almada Negreiros a defender-se de haver negligenciado o companheiro de Orpheu após a sua morte (interpretação minha, de memória), outro com o barbeiro de Pessoa. Este vídeo é-me especialmente querido. Reencontrei-o recentemente no RTP Arquivos, excerto de um programa conduzido por Manuel Poppe em 1973. Lá está o barbeiro Manassés a dizer que desconhecia o talento do poeta, a sua inteligência, mas tinha a impressão de um homem sério, boa gente, que ritualmente o visitava ao meio-dia, tão rigorosamente que já era reconhecido pelo tossir. De vez em quando o próprio barbeiro tratava do cliente na sua residência, reparando numa mesa com três cinzeiros cheios de beatas, prontificando-se a limpá-la e a fazer recados, como ir ao Trindade aviar uma receita numa garrafinha de dois e meio, ou seja, conhaque e tabaco para matar o bichinho. Palavra de Manassés.
   Foi para mim importante ter visto tal coisa, começo de um processo de desmistificação que é importante levar a cabo quando nos deparamos com uma personalidade de génio. O poeta de Hora Absurda era homem como outros homens, fumava e bebia, ia ao barbeiro, contava anedotas. Parece-me que a proposta de leitura fixada por Jerónimo Pizarro em Ler Pessoa (Tinta-da-China, Maio de 2018) afina pelo mesmo diapasão, humanizando o mito, isto é, deslocando para o plano da análise literária aquilo que tantas vezes nos surge perniciosamente mitificado, confrontando o texto produzido com dados biográficos relevantes enquanto vias de contextualização da obra. Um tema clássico como o da pluralidade versus individualidade encontra, deste modo, uma solução bem mais credível do que outras tantas vezes exploradas, quer no domínio da psicologia, quer no de uma certa dimensão especulativa algo alienante: «Acredito que Pessoa foi múltiplo, mas também que nós os críticos, os seus leitores o continuamos a multiplicar e desdobrar de forma exponencial; e que, cada dia, a sua autêntica e definitiva multiplicidade é esta, ante a qual a outra, a verdadeira, se vai tornando pequena» (p. 22).
   Creio que para nos concentrarmos na outra multiplicidade, «a verdadeira», independentemente do nível ou grau de legitimidade de toda e qualquer teoria, talvez possa contribuir uma noção menos deslumbrada, porventura mais mundana, do homem quotidiano que foi correspondente comercial e inventor de jogos de tabuleiro, publicitário falhado e polemista, ideólogo de dicionários e praticante de ginástica, autor de projectos sem fim, tão atreito a temas esotéricos como a quadras populares. O inventário de curiosidades disponibilizado por Carlos Pittella e Jerónimo Pizarro no volume Como Pessoa Pode Mudar a Sua Vida – Primeiras Lições (Tinta-da-China, Fevereiro de 2017) título que, à boa maneira pessoana, transporta já em si mesmo a ironia de sugerir que é aquilo que não é sendo-o, ou seja, um manual de auto-ajuda , fornece-nos material precioso nessa direcção de uma desmistificação necessária, útil e urgente, anunciada logo no intróito: «Fernando Pessoa é muitas vezes concebido como um ser fantasmagórico, que se isolava de todos para criar um universo interior em detrimento da vida exterior. Este livro busca desmentir tal mito, oferecendo 49 lições de vida e poesia (e mais de duzentas imagens, muitas delas inéditas) de um ser humano cheio de sonhos e projectos, que colocou a poesia no centro da sua existência e que, ainda hoje, não pára de gerar surpresa e admiração» (p. 14).
   Ora, se de pouco vale conhecer a vida de um poeta para avaliar a sua poesia, muito teremos a ganhar em tomar consciência de que por detrás dessa poesia que sugere certo tipo de homem está, afinal, alguém que no limite, não sendo vulgar, pois nunca ninguém que coloque a poesia no «centro da sua existência o será», é tão humano quanto outros humanos o são: frágeis, sonhadores, bem-sucedidos numas coisas, fracassados noutras, divertido aqui, sorumbático acolá, contraditório, inseguro nestas matérias, impetuoso naquelas. «Se alguma vez sou coerente, é apenas como uma incoerência da incoerência» (p. 2645), disse o próprio em carta dirigida a um editor inglês. Que importa quanto de verdade há numa frase destas se nos ativermos apenas ao que nela há de literatura? Talvez tenha interesse, porém, perceber que esta mesma frase justifica uma asserção acerca do legado: «Pessoa não cabe em rótulos, assim como os seus poemas não cabem num só livro: sempre aparecem inéditos, sempre aparecem erros de transcrição… E todas as lições de Pessoa não cabem numa só vida: e talvez por isso o poeta tenha precisado inventar tantas» (p. 263). Talvez.  

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