Foi há muitos anos, no tempo dos CD-ROM. Ofereceram-me um
desses objectos anacrónicos com informação vária sobre Fernando Pessoa, poeta
que à época já lia com assiduidade. Entre os conteúdos, alguns vídeos. Não me
esqueço de dois. Um com Almada Negreiros a defender-se de haver negligenciado o
companheiro de Orpheu após a sua
morte (interpretação minha, de memória), outro com o barbeiro de Pessoa. Este
vídeo é-me especialmente querido. Reencontrei-o recentemente no RTP Arquivos,
excerto de um programa conduzido por Manuel Poppe em 1973. Lá está o barbeiro
Manassés a dizer que desconhecia o talento do poeta, a sua inteligência, mas
tinha a impressão de um homem sério, boa gente, que ritualmente o visitava ao meio-dia, tão rigorosamente que já era reconhecido pelo tossir. De
vez em quando o próprio barbeiro tratava do cliente na sua residência,
reparando numa mesa com três cinzeiros cheios de beatas, prontificando-se a
limpá-la e a fazer recados, como ir ao Trindade aviar uma receita numa
garrafinha de dois e meio, ou seja, conhaque e tabaco para matar o bichinho.
Palavra de Manassés.
Foi para mim importante ter visto tal coisa, começo de um
processo de desmistificação que é importante levar a cabo quando nos deparamos
com uma personalidade de génio. O poeta de Hora Absurda era homem como outros
homens, fumava e bebia, ia ao barbeiro, contava anedotas. Parece-me que a
proposta de leitura fixada por Jerónimo Pizarro em Ler Pessoa (Tinta-da-China,
Maio de 2018) afina pelo mesmo diapasão, humanizando o mito, isto é,
deslocando para o plano da análise literária aquilo que tantas vezes nos surge perniciosamente
mitificado, confrontando o texto produzido com dados biográficos relevantes
enquanto vias de contextualização da obra. Um tema clássico como o da
pluralidade versus individualidade encontra, deste modo, uma solução bem mais
credível do que outras tantas vezes exploradas, quer no domínio da psicologia,
quer no de uma certa dimensão especulativa algo alienante: «Acredito que Pessoa
foi múltiplo, mas também que nós — os críticos, os seus leitores —o
continuamos a multiplicar e desdobrar de forma exponencial; e que, cada dia, a
sua autêntica e definitiva multiplicidade é esta, ante a qual a outra, a
verdadeira, se vai tornando pequena» (p. 22).
Creio que para nos concentrarmos
na outra multiplicidade, «a verdadeira», independentemente do nível ou grau de legitimidade de
toda e qualquer teoria, talvez possa contribuir uma noção menos deslumbrada,
porventura mais mundana, do homem quotidiano que foi correspondente comercial e
inventor de jogos de tabuleiro, publicitário falhado e polemista, ideólogo de dicionários e praticante de ginástica, autor de projectos
sem fim, tão atreito a temas esotéricos como a quadras populares. O inventário
de curiosidades disponibilizado por Carlos Pittella e Jerónimo Pizarro no
volume Como Pessoa Pode Mudar a Sua Vida – Primeiras Lições (Tinta-da-China,
Fevereiro de 2017) — título que, à boa maneira pessoana, transporta já em si mesmo a
ironia de sugerir que é aquilo que não é sendo-o, ou seja, um manual de
auto-ajuda —,
fornece-nos material precioso nessa direcção de uma desmistificação necessária,
útil e urgente, anunciada logo no intróito: «Fernando Pessoa é muitas vezes
concebido como um ser fantasmagórico, que se isolava de todos para criar um
universo interior em detrimento da vida exterior. Este livro busca desmentir
tal mito, oferecendo 49 lições de vida e poesia (e mais de duzentas imagens,
muitas delas inéditas) de um ser humano cheio de sonhos e projectos, que colocou
a poesia no centro da sua existência e que, ainda hoje, não pára de gerar
surpresa e admiração» (p. 14).
Ora, se de pouco vale conhecer a vida de um
poeta para avaliar a sua poesia, muito teremos a ganhar em tomar consciência de que por
detrás dessa poesia que sugere certo tipo de homem está, afinal, alguém que no
limite, não sendo vulgar, pois nunca ninguém que coloque a poesia no «centro da
sua existência o será», é tão humano quanto outros humanos o são: frágeis,
sonhadores, bem-sucedidos numas coisas, fracassados noutras, divertido aqui,
sorumbático acolá, contraditório, inseguro nestas matérias, impetuoso naquelas. «Se
alguma vez sou coerente, é apenas como uma incoerência da incoerência» (p.
2645), disse o próprio em carta dirigida a um editor inglês. Que importa
quanto de verdade há numa frase destas se nos ativermos apenas ao que nela há
de literatura? Talvez tenha interesse, porém, perceber que esta mesma frase
justifica uma asserção acerca do legado: «Pessoa não cabe em rótulos, assim
como os seus poemas não cabem num só livro: sempre aparecem inéditos, sempre
aparecem erros de transcrição… E todas as lições de Pessoa não cabem numa só
vida: e talvez por isso o poeta tenha precisado inventar tantas» (p. 263).
Talvez.
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