domingo, 12 de junho de 2022

VOO OUTRO (1993)

 


Um entusiasmo que esmorece, uma cor que se apaga, tecido gasto prestes a rasgar-se, a fenda aberta na parede, um buraco através do qual alguém espreita para ver se ainda há vida. Nada fazes para que seja diferente, o que leva a crer não haver interesse algum da tua parte em que seja diferente. Nem mudança, nem ruptura, nenhum gesto, nada que desvie a locomotiva do abismo. Este deixar andar paga-se com tristeza e tormento, aquele tipo de infelicidade que a hipocrisia disfarça como base num rosto lavrado por rugas e cicatrizes. Cai sobre os dias um trovão desgostoso, alguma coisa irremediavelmente perdido bate as asas como um pássaro prestes a claudicar no chão em que depenicou o veneno mortal. Topas então na solidão que delimita as cores evitando tingimentos, no traço negro que não se mistura com a superfície branca, e as palavras ganham uma terceira dimensão que as faz saltar da página como se fossem corpos com vida. Ah, se pudesse afagar uma palavra como outrora afaguei os cabelos do amado e novamente sentir o que então senti. Se pudesse apalpar os seios ao voo e penetrar aquele vê que só de visto. Tronco morto de árvore esquecida, terra, a lagoa transformada em barro seco, nem um milímetro de lama em que afundar os pés, nem pedra. Pó. Simplesmente pó. 

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