Esta noite sonhei que Espanha tinha declarado guerra ao
meio literário português, invadindo com tijolos de quinhentas páginas as
estantes das livrarias. Mas o meio literário português resistiu, não se fez
rogado, batendo-se galhardamente no campo nacional com citações de ingleses e
de franceses obscuros. Uma longa tradição referencial, que pelo menos desde
Luís António Verney estimula debates acerca da existência de uma filosofia
portuguesa ou de uma mera filosofia em Portugal, serviu de escudo a escritores
e críticos e poetastros em geral, cujos textos se fazem legitimar com uma média
de três citações por frase, quatro referências culturais por estrofe, cinco
metáforas sobre a natureza da poesia por verso e adiante. Os espanhóis levaram
um solavanco, mas logo deram cabo do universo literário português com essa arma
de destruição maciça que eles têm e nós não: leitores. Estava tudo estragado. É
que nem citando, nem referindo, nem mergulhando no metatexto, nem chafurdando
no intertexto, nem aprofundando os métodos escolásticos do cortar, copiar e
colar, nada nos safou dessa mediocridade saloia que é andarmos muito empenhados
a discutirmo-nos lendo americanos, sul-americanos, italianos, russos (também já
foi parra que deu uva), franceses, ingleses, alemães, nórdicos (policiais, upa,
upa), sem na verdade sequer nos lermos. Não ajudou igualmente o facto de lá
fora nem sequer saberem que existimos, sendo o meio literário português, o
sistema, o campo, o universo, pouco mais que uma esotérica possibilidade cujo
interesse apenas conforta a ignorância dos demais. Perdemos a guerra,
faltaram-nos argumentos, mas não perdemos o orgulho. Invadidos, rendidos,
aculturados, agarrámo-nos à língua como cão esfaimado a um osso, dando cabo
dela com acordos ortográficos e chagas de minh’alma. Valha-nos a qualidade dos
escritores fantasma, tão bons a denegrir o trabalho dos outros como a produzir
tralha a pataco.
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