quarta-feira, 10 de agosto de 2022

DOUTOR DE LA SERNA

 


O CADÁVER SÁBIO

   Penso às vezes num cadáver que uma certa tarde estudei sozinho na sala de dissecção da Faculdade. 
   Ah, como teriam sido uns sábios aqueles barbeiros que frequentavam na Universidade um curso de anatomia e cirurgia, se pudessem ter estudado muitos cadáveres como aquele que perfurei e estudei dois dias a fio!
   Nesse cadáver, foram muitas as coisas que se tornaram claras, parecendo que ele ajudava a resolver as dificuldades que eu nele ia estudando. Foi ao dissecar aquele cadáver que pude compreender muitas das coisas de que depois me servi em muitos dos meus tratamentos.
   Não encontro teoria capaz de explicar como pôde ser tão clarividente aquele morto; mas a verdade é que de dentro da sua morte agia como um mestre. Várias vezes, aberto como o tinha e já sem coração, fitei-lhe o rosto para ver se ele sorria ao ver como eu acertava em muitas coisas que até então não tinha podido resolver; mas no seu rosto havia apenas serenidade e uma espécie de pacífica suficiência. Muito respeitosamente e com o cuidado com que se colocam as pinças no açucareiro, assim lhe aplicava as minhas pinças no peito.
   Não poderei esquecer aquele cadáver, um cadáver como nunca vi outro. Com os preparados que fiz com os seus tecidos e os seus micróbios, pude resolver vários casos difíceis, isolei alguns novos micróbios.
   Não é isso porém o mais importante.
   O importante é que ele estava cheio de associações de ideias.
   Se tivesse podido durar mais dois dias sem se decompor, teria até descoberto a cura para o cancro.
   Admirável cadáver!

Ramón Gómez de la Serna, in O Médico Inverosímil, tradução de Júlio Henriques, Antígona, Novembro de 1998.

Sem comentários: