quarta-feira, 10 de agosto de 2022

VEIA SAFENA MAGNA

 
Esta noite tive um sonho estranhíssimo, desconfio que animado pelas fotografias estivais partilhadas nas redes. Esses instantâneos de gente estendida na praia com o horizonte a espreitar entre as pernas estão a provocar estragos na minha sanidade mental. Uma pessoa fica a olhar para os fragmentos de pernas, reduzidas a parte das coxas e aos joelhos, e dá por si a imaginar as cosias mais horríveis. No sonho eu estava a chegar a uma praia e reparei que todas as pessoas que, como eu, chegavam ou, em sentido inverso, dela partiam, circulavam em cadeiras de rodas ou à laia de amputados das duas pernas que se apoiam nos braços para se deslocarem. Não havia banhista que tivesse pernas, nem os nadadores-salvadores. Só se via gente amputada abaixo do joelho. Tal como nas fotografias em que vislumbramos em primeiro plano partes de coxas e joelhos, eu via cotos por todo o lado, deitados nas toalhas, a apanhar sol, a nadar no mar, a fazer as coisas que os indivíduos normalmente fazem durante a época balnear. Senti-me altamente deslocado, eu que tinha o corpo completo, inteiro, absoluto, incólume. Ou assim julgava antes de haver passado pelas brasas, depois de me instalar na duna mais isolada que encontrei. Ao acordar, a praia estava repleta de cotos a saltitar de um lado para o outro, a mergulhar, a comer bolas de Berlim. Não sei se estão a ver, as pessoas já nem cabeça tinham. Nada de tronco, braços, zero. Aqueles seres eram cotos, resumiam-se à parte da anatomia humana que vai das articulações da coxa com o quadril até ao joelho. E perguntam vocês: como conseguiam estes seres comer bolas de Berlim? Pois, tinham pequenas bocas nas coxas, junto à veia safena magna. E tinham minúsculos olhos e ouvidos e nariz onde normalmente estão o fémur, os ramos das artérias femorais, a tíbia, a fíbula e a patela. Mas o pior estava para vir. Ao escutar a sineta do homem das bolas de Berlim, levantei-me para chamá-lo. Acenei. Como não me visse, tentei soltar um «ó faz favor». Não saiu nada. Esforcei-me novamente e nada, não conseguia falar, tinha perdido a boca. Entrei em pânico à procura da boca. Mas o que raio me tinha acontecido à boca? Teria sido comida por alguma coxa canibal? Ter-me-ia sido roubada? E agora, o que seria da minha vida sem puder degustar uma bola de Berlim? Caí de joelhos sobre a areia, esmorecido, tristíssimo, desfeito, a observar com cobiça nunca antes experimentada os cotos que se lambuzavam em bolas de Berlim… na praia.

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