domingo, 14 de agosto de 2022

SANTO REMÉDIO

 

Quando se discute a história da literatura raramente se faz justiça ao Index librorum prohibitorum, lista dos livros cuja leitura estava proibida pela Igreja Católica Apostólica Romana. Está lá tudo o que é bom. Ao contrário do que hoje sucede, a padralhada tinha bom gosto. François Rabelais (Chinon, 1494 — Paris, 1553) foi um dos indexados, muito por culpa da inclinação para satirizar com humor escatológico os poderosos do seu tempo. A Sorbonne, que nem sempre foi argumento curricular, mandou confiscar-lhe os livros. Rabelais correspondera-se com Erasmo de Roterdão num período histórico em que as querelas entre católicos e protestantes davam bons churrascos. Neste caso, ganharam os conservadores católicos. O padre francês dedicou-se à medicina e deixou os assuntos de fé a quem de direito, não sem antes dar à estampa, sob o pseudónimo anagramático Alcofrybas Nasier, duas comédias burlescas inspiradas em lendas populares e farsas do romanceiro medieval. “Les horribles et épouvantables faits et prouesses du très renommé Pantagruel Roi des Dipsodes, fils du Grand Géant Gargantua”, mais conhecido como o livro de Pantagruel, foi publicado em 1532. Dois anos depois apareceu “La vie très horrifique du grand Gargantua, père de Pantagruel”. O primeiro é sobre Pantagruel, um gigante enfardador com um apetite voraz. O segundo é sobre o pai de Pantagruel, o gigante Gargantua. Da mãe de Pantagruel, Badebec, sabe-se apenas que morreu durante o parto. Não admira. Há coisa de dois anos apareceu nas livrarias portuguesas um livrinho delicioso, intitulado “Tratado do Bom Uso do Vinho”, com alguns capítulos do Quinto Livro de Pantagruel. Lá vem o poema da garrafa, que há quem diga ser dos primeiros exemplos de poesia visual. As pessoas são um pouco exageradas. Sabendo-se que Rabelais trocou a religião pela medicina, eu cá até prefiro confiar no seu receituário. Diz ele que «um só clister báquico vale mais do que milhentas purgas». A tradução é do Miguel Martins. E oferece-nos uma lista das maleitas internas que podem ser curadas pelo vinho:
 
«Bebam, pois, vinho com fartura contra:
 
a opacidade dos olhos,
os olhos engordurados,
o mormo e o garrotilho,
a azia,
a sarna na cabeça,
a pestilência dos dentes,
a língua turca,
a língua grega,
a tinha,
a bicha-cadela dentro da orelha,
a inflamação do nariz e dentro das cuecas,
a rosácea,
o apodrecimento do fígado e do baço,
o patoá da Saboia,
os cálculos biliares,
o tumor nos testículos,
o mijo quente,
a inflamação dos órgãos genitais,
os achaques e o definhamento de qualquer membro,
o mau-humor,
os furúnculos no cu,
as queimaduras de água a ferver,
o umbiguismo,
et cætera»…

 
E com esta me vou, que tenho aqui um furúnculo a incomodar-me desde manhãzinha cedo. Ah, quase esquecia, a edição do tal livrinho é da momo. E a ilustração abaixo é do Gustave Doré (1832-1883).

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